"Cara, político tem que ter lado". Ouvi muito a frase, assim como "Governo é governo, oposição é oposição". As definições, às vezes exaltadas, têm certa procedência e se alastra vida afora, confrontando o bem e o mal, o certo e o errado sob os imperativos da coerência e da fidelidade.
Levadas ao pé da letra, as dualidades se impõem: pão, pão; queijo, queijo, o que simplifica a complexidade do mundo real e revela um potencial de conflito entre os que acreditam numa verdade única.
Caso você não tome partido imediatamente ou caia na besteira de dizer "vou pensar" ou tentar argumentar que "ninguém tem razão porque todos têm razões", tá ferrado, é um "isentão"; "tá em cima do muro"; "frouxo" e todo tipo de etiqueta depreciativa vai lhe servir de rótulo.
Não importam argumentos. Aliás, não há argumentos; não há diálogo. Debate, nem pensar. E foi esse caminho torto e acidentado que rompeu laços de amizade, levou o ódio às relações familiares e fracionou a coesão social.
Em contrapartida, o que ameniza e possibilita a vida em comum é assumir a consciência de que cada pessoa é única e plural e, se não o é, se esforçaria em ser um humanista sempre em busca de uma via nas crises das democracias.
Longe de entrar no complexo debate do relativismo cultural, me limito a expressar a intolerância e a hostilidade do cotidiano brasileiro que ameaça uma convivência respeitosa e civilizada. O clima de radicalização que alimenta os extremismos não aconteceu do dia para noite. São ventos que sopram da ancestralidade escravocrata e do autoritarismo que exala o tradicional "você sabe com quem está falando?"
Neste sentido, as eleições de outubro, com ofensas de mais e propostas de menos, tiveram no poder do centro, apesar de esmagado pela força das extremas, o fator decisivo na vitória de Lula, em especial, uma parcela não lulista e que temia um retrocesso democrático, o golpismo, repelido no dia 8 de janeiro com amplo apoio da sociedade e das instituições democráticas.
O Presidente, diante do momento histórico, assumiu compromisso, público e solene, de pacificar o país; realizar um governo de frente ampla, representativo da sociedade e contar com a formação de uma maioria parlamentar.
Passados pouco mais de quatro meses de governo, o Presidente, em vários episódios, tem usado uma retórica inadequada em relação aos desafetos, às instituições (Bacen, Eletrobras), categorias sociais (agronegócio), questões internacionais (guerra da Ucrânia). Na economia, o Presidente definiu gasto como investimento; refundou a teoria das finanças públicas e apequenou a responsabilidade fiscal.
De outra parte, o político, reconhecidamente habilidoso, tem sofrido reveses no Congresso, nåo somente por uma articulação mais eficiente, mas por um equívoco estratégico: o Parlamento atual é muito poderoso, inorgânico e tem um líder com instrumentos bastante convincentes para os deputados, seus liderados e eleitores.
Nesta linha, o governo enfrenta uma luta política e ideológica na regulação das poderosas big techs e sofreu significativa derrota no Congresso na tentativa de revogar importantes regras sobre o Marco legal do saneamento.
Ao privilegiar os setores mais à esquerda do PT com gestos e ações concretas, o Presidente desmerece o poder do centro político que tem sido, em muitas ocasiões e diferentes nações, a imantação responsável por vitórias eleitorais e sucesso no manejo da governabilidade.
Na vida, o poder do centro carrega a "justa medida aristotélica" e, como ensina Edgar Morin, "toda paixão precisa comportar a vigilância da razão, e toda razão precisa comportar o combustível da paixäo".
Na prática política, o poder do centro produz consensos, suporte dos avanços alcançados pelo governo aliancista de FHC e na gestão pragmática do governo Lula, prometida pela "Carta ao povo brasileiro", assinada em 22 de junho de 2002.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco