O véu da tolerância foi rasgado

"Não aceitas, não me perdoa. Não te aceito, não te perdoo. Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és. Um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a tal ponto, que nem eu posso imaginá-lo. Enfim, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal"
OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS
Publicado em 27/05/2023 às 0:00
José Saramago: escritor português, Prèmio Nóbel de Literatura,autor de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" Foto: PIERRE-PHILIPPE MARCOU/AFP


Transcrevi acima uma das passagens mais reflexivas do livro de José Saramago, o Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras, 2005).

Quem é o Bem? Quem é o Mal? Em que medida eles podem ser complementares? Imerso no nevoeiro que se formou sobre a barca em que navegas nos últimos anos, caro leitor, tua resposta será distinta.

A depender de tua experiência na longa jornada da vida, das pessoas com as quais convivestes, das crenças que te moldaram, das dúvidas que tornastes certeza, tu saberias compartilhar sem apontar o dedo a quem de ti discordes?

Tenho sinceras dúvidas. O véu da tolerância foi rasgado no tempo das disputas modernas e a sacralidade das relações tornaram-se letra morta no conviver entre gentes.

Saramago militou até a morte em defesa do credo comunista tal qual ele o compreendia. Participou da política, dirigiu jornais, constrangeu-se entre pares, mas foi inflexível no seu pensar.

"Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro".

Quando a debacle da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se consumou, o muro de Berlim desmoronou e a utopia da igualdade marxista se mostrou inatingível, ele perdeu o chão que ainda o sustentava e com esse foi-se a sua fantasia.

Então a poderosa pena do escritor português colocou no drama da vida e morte de Jesus Cristo a crua visão materialista da esquerda do século passado.

Deu contornos humanos ao que deveria ser místico e tão somente pura fé.

Reformulou a história contada nos quatro evangelhos certificados pela Igreja e criou a sua própria narrativa de caminhada, discursos, milagres e sofrimento do Filho de Deus e seguidores.

Trata-se de um romance agressivo aos dogmas cristãos que nos rapta por momentos e nos faz pensar nas relações egoístas de poder dos nossos dias.

Relações a descortinar contendores que sobrevivem de se alimentarem das entranhas adversárias expostas nas arenas políticas, psicossociais e econômicas, que impedem a humilde aceitação de que o dissenso gera o consenso.

Segundo alguns analistas da obra, Saramago colocou no romance o Bem contra o Mal pelejando mais uma guerra ideológica que religiosa.

Compreensível diante do "fim da história" projetada por Francis Fukuyama ao início da década de 1990. Contudo, a história morreu para logo ressuscitar com contornos semelhantes.

O Bem e o Mal continuam a duelar e, se desejares tomar partido, não esqueças do que afirmou o escritor: o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da reserva

 

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