Uma estrada longa, mas não uma estrada sem fim

Cumpra-se, enfim, de uma vez por todas a Constituição. Faça-se do Brasil uma pátria de irmãos e não de torcidas organizadas. Ou jamais vai existir uma representação parlamentar integralmente legítima
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 13/06/2023 às 0:00
Deputado Nikolas Ferreira, que fez discurso transfóbico no plenário da Câmara Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados


Recente pesquisa da ONU mostrou que quase 85 de cada 100 entrevistados, dentre os brasileiros, se disseram possuidores de "algum preconceito" contra mulheres. Pior: desvelou que o sexismo chega ao cúmulo de legitimar a violência.

Dos 80 Países analisados, foram esquadrinhadas quatro dimensões sobre o preconceito de gênero: integridade física, educacional, política e econômica. Os piores indicadores do Brasil se encontram na dimensão da integridade físico-psicológica, inclusive no que tange ao direito de querer não ter filhos.

O festival de horrores prossegue ao apontar que quase 40% dos entrevistados admitiram que mulheres na Política não são tão boas quanto os homens. Detalhe: na atual legislatura congressual verde e amarela, dos 513 Deputados Federais, apenas 91 são mulheres. Pessoas trans, somente 2.

Recorte para o desabafo subjacente à reportagem de Nicole Gondim Porcaro e Monike Santos para a revista eletrônica Consultor Jurídico, intitulada "Ataques às mulheres e ao 'gênero' no Congresso e os avanços necessários", publicação em 12/06/2023. No texto, as autoras voltam mentalmente à tribuna da Câmara dos Deputados no último 8 de março (dia internacional da mulher) e rememoram os discursos carregados de machismo, misoginia e transfobia ali proferidos; pronunciamentos que, contudo, em absoluto, podem ser blindados pela imunidade parlamentar, inclusive, no que tange à transfobia.

Em que pese haja todo um arcabouço legal de reação a esse estado de coisas, o principal deles no tocante à transfobia, a Lei Federal nº 14.192/2021, ao tipificar o crime de violência política no Código Eleitoral e no Código Penal, utilizou não o termo "gênero", mas antes o vocábulo "sexo", a atingir em cheio a proteção necessária às pessoas trans.

Ora, quando é televisionado que um jovem parlamentar estreante subiu à respectiva tribuna não para denunciar a corrupção ou a fome, mas para vestir uma peruca e se dirigir pejorativamente à população trans, em pleno 8 de março, promovendo não somente desinformação, como hostilidade a esse contingente de vulneráveis, é intuitivo que não se pode escudar tamanho absurdo na figura da imunidade política (artigo 53 da CRFB/1988). Afinal, como foi muito bem pontuado pela jurista e professora Antonella Galindo no Conjur de 27/03/2023, a proteção em tela conecta-se com o exercício da legislatura, isto é, com o mandato, na esteira do que o STF por diversas vezes estabeleceu (vejam-se, por exemplo, os Inquéritos 4.781, 2.332 e 1.710, e a Pet 5.705, dentre outros).

Cito a professora (e amiga) Antonella: "(...) a imunidade atribuída ao discurso parlamentar não é absoluta, pois o conteúdo deste precisa guardar conexão com o exercício do mandato, já que a inviolabilidade do congressista (extensiva aos deputados estaduais e, em menor medida, aos vereadores) existe não para protegê-lo individualmente, mas para o respeito à vontade democrática expressa na sua função, evitando que o parlamentar seja perseguido ou penalizado de modo arbitrário e tenha maior liberdade para bem desempenhar o seu trabalho".

Vale o mesmo raciocínio no tocante à fala machista, misógina, racista em razão da cor da pele, da ideologia religiosa ou da procedência nacional. O preconceito é um tumor sempre maligno no seu âmago, sendo fator complementar, ainda que significativo, o modo e contra quem é manifestado.

O próprio STF, mesmo impondo limites à imunidade parlamentar, também entende que é presumido que a opinião externada em plenário tem relação com o mandato (vide Inq. 1.958), o que sem dúvida precisa ser reconsiderado ou se corre o sério risco de se tornar dificílimo que uma fala preconceituosa, racista, misógina ou transfóbica sofra punição.

É, em suma, uma longa estrada, mas não uma estrada sem fim. A saída: educar a infância e a juventude, para que não seja preciso castigar os homens adultos. E abraçar o mantra de Voltaire, para quem "preconceito é opinião sem conhecimento". Cumpra-se, enfim, de uma vez por todas a Constituição. Faça-se do Brasil uma pátria de irmãos e não de torcidas organizadas. Ou jamais vai existir uma representação parlamentar integralmente legítima.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire,  advogado

 

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