A importância do julgamento com perspectiva de gênero, raça e orientação sexual: uma questão de elementar decoro

O objetivo-chave é combater e não repetir estereótipos, desigualdades e assimetrias de tratamento, nem revitimiza ou perpetuar diferenças, galvanizando, com isso, o real sentido da palavra justiça
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 21/06/2023 às 0:00
Não se pode aceitar estereótipos discriminatórios como "práticas sociais" sem os criticar, questionar ou afastar Foto: Freepik


A Constituição de 1988 dá centralidade à dignidade da pessoa humana e traz de maneira explícita a previsão do direito à igualdade, da igualdade entre os gêneros e da vedação da discriminação.

A igualdade se revela sob dois enfoques: o formal, conforme o qual todos são iguais perante a lei, vedadas distinções de classe, raça, orientação sexual, gênero e a criação de privilégios; e o material, segundo o qual, embora todos sejam considerados iguais, alguns grupos requerem tratamento distinto pelo Estado.

A discriminação pode acontecer de modo direto, quando o tratamento que seria devido é negado de forma consciente, assim como indireto, quando o tratamento aparentemente neutro gera efeitos distintos para alguns grupos.

Não há, outrossim, como admitir também o "preconceito recreativo", aquele disfarçado como brincadeira, visto até em palcos de stand up comedy, a partir de falas depreciativas. Ora, se causa constrangimento, não é para achar graça..

No plano do comportamento ético, é preciso que o julgador questione para além da afirmação de arrependimento como tese de defesa, desde que em jogo acusação que perpasse o componente do racismo, do machismo, da LGBTfobia, da xenofobia.

Mais que verbalizar a retórica de repúdio ao preconceito, urge demonstrar atitudes que conduzam a isso. Outros caminhos consistem em não minimizar o preconceito, repensar hábitos enraizados, reconhecer o próprio lugar de fala e denunciar práticas ou falas de cunho discriminatório.

Julgar com perspectiva de gênero é aplicar um método hermenêutico segundo o qual é proposto ao magistrado promover essa atividade de interpretação atento à realidade, identificando e rompendo desigualdades estruturais. Isso não torna o julgador alguém parcial, pois não significa necessariamente uma decisão favorável às pretensões de grupos subordinados.

Não se pode aceitar estereótipos discriminatórios como "práticas sociais" sem os criticar, questionar ou afastar. Não se pode atuar ao julgar atrelado a uma perspectiva androcêntrica, como se todos fossem homens, invisibilizando ou ignorando opressões estruturais e relações desiguais marcadas pelo gênero, raça, etnia, idade, classe, origem territorial etc.

Julgar propicia uma atuação mais respeitosa às partes envolvidas. Identificada a demanda inserida na temática de gênero, é preciso por exemplo refletir sobre medidas protetivas pautadas na realidade vivida. Audiências devem ser conduzidas barrando as dinâmicas que reproduzam as desigualdades estruturais, evitando a violência institucional e gênero. Já a análise de provas deve levar em conta sua importância especialmente em ações envolvendo abusos em locais privados, como nas denúncias de assédio sexual no ambiente de trabalho.

Nada pode explicar tanto um argumento quanto o exemplo prático. Pois vamos a ele aqui e agora. Quando analisados os bens jurídicos tutelados pelas normas penais brasileiras ao longo do tempo, verifica-se que o Código Criminal do Império tratava o estupro e o rapto como crimes contra a honra, significando que o bem jurídico tutelado não era a liberdade sexual da mulher, mas a honra e imagem que ela deveria manter perante a comunidade. No Código Criminal de 1940, que ainda vigora, tais infrações foram capituladas como crimes contra os costumes, novamente posicionando a moralidade como bem jurídico a ser protegido, sem que a mulher em si se veja resguardada. Já a expressão "mulher honesta" constou até 2005 do artigo 215 do Código Penal, trazendo ínsito um juízo de valor de natureza patriarcal, tendo como desbordo a apuração perante os órgãos estatais de persecução penal, da "honestidade" da mulher que se vê vitimada por delitos sexuais.

Todas as coordenadas, protocolos e diretrizes acima expostas não somente devem, como precisam ser seguidas, culturalizadas e internalizadas no processo administrativo oabeano nas suas múltiplas etapas ou fases. O objetivo-chave é combater e não repetir estereótipos, desigualdades e assimetrias de tratamento, nem revitimiza ou perpetuar diferenças, galvanizando, com isso, o real sentido da palavra justiça.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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