Crônica de uma inelegibilidade anunciada

Polarizada como se encontra e não de hoje, cindida em continentes que não se conversam, mergulhada em ideologias que não sentam à mesma mesa nem com mediação do Vaticano, é compreensível que toda uma massa de eleitores reduza o julgamento em tela a uma vendeta da toga
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 06/07/2023 às 0:00
Fachada do edifício sede do TSE Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil


"Se alguém põe fogo em um edifício e os bombeiros chegam a tempo, a ação que evita a tragédia elimina o crime de quem riscou o fósforo?" (Ministro Floriano de Azevedo Marques Neto, TSE, AIJE no 0600814-85.2022.6.00.0000, Brasília, junho/2023). Previna-se aos incautos. Este é um artigo de opinião técnico-jurídica sobre o sentido de um julgamento jurídico histórico, considerando a pessoa de interesse dele personagem. Um julgamento não unânime, cujo contexto não deve ser apequenado a debates entre direita e esquerda na política.

O TSE concluiu a análise de uma ação de investigação (AIJE) contra o ex-presidente da República Bolsonaro. Foi Relator o Ministro Benedito Gonçalves, egresso do STJ, que entendeu que, por ter utilizado a estrutura da Presidência e do cargo para promover reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada em desvio de finalidade, visando desacreditar o sistema eletrônico de votação para angariar simpatia social, o investigado cometeu abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

Por 5 votos a 2, a Corte chegou a tal conclusão analisando não exclusivamente o episódio da reunião com os embaixadores, mas o "conjunto da obra" de falas e postagens, inclusive, em redes sociais, nos quais o ex-Presidente repercutiu o que se considera fake news sobre a autoridade do voto eletrônico.

A Justiça Eleitoral compreendeu que houve abuso de poder político, figura percebida na dimensão das situações em que o detentor do poder se vale de sua posição para agir de modo a influenciar o eleitor. Enquanto isso, o abuso de poder econômico é o uso excessivo, antes ou durante a campanha, de recursos materiais ou humanos com valor econômico, buscando o beneficiamento de candidato, partido ou coligação, afetando a normalidade e a legitimidade das eleições.

Pontuado que o ex-Presidente ainda responde a outras 15 AIJE's, cumpre frisar que o cerne do veredito do último 30/6 foi a reunião de quase um ano antes, a três meses antes do primeiro turno das eleições, convocada em resposta a encontro oficial do próprio TSE, que congregara autoridades internacionais para uma apresentação acerca do sistema de votação do País. Na residência oficial do Chefe do Executivo, o ex-Presidente promoveu segundo noticiado apresentação com direito a slides colocando em dúvida o referido sistema e a própria Justiça Eleitoral. Por sua vez, o "uso abusivo dos meios de comunicação" decorreria da premissa de que o evento (e seu conteúdo) foi transmitido ao vivo pela TV Brasil, que é estatal, e também pelas redes sociais mdo ex- Presidente.

Segundo o voto do Relator, a reunião "teve nítida finalidade eleitoral mirando influenciar o eleitorado e opinião pública nacional e internacional", de sorte que "o uso da estrutura pública e das prerrogativas do cargo do presidente da República foi contaminada pelo desvio de finalidade em favor da candidatura da chapa investigada".

Polarizada como se encontra e não de hoje, cindida em continentes que não se conversam, mergulhada em ideologias que não sentam à mesma mesa nem com mediação do Vaticano, é compreensível que toda uma massa de eleitores reduza o julgamento em tela a uma vendeta da toga ou a um lawfare reverso. Enquanto isso, no espectro oposto, outros escolhem alegrar-se pelo veredicto, apelando ao humor, expressando alívio, talvez cegos para o fato de que a inelegibilidade não sepulta a conjuntura que trouxe ao poder um movimento como o bolsonarismo.

Escolho uma terceira via para reverberar o que foi julgado pelo TSE. E o faço à mluz da sabedoria popular de que só se colhe aquilo que se planta. A desinformação contra o voto eletrônico, sem provas de fraudes ou brechas de possível invasão, não é liberdade de expressão. Palavras têm peso e consequências, ainda mais quando quem as profere detém altas responsabilidades. A democracia, pilar civilizatório, eixo da Constituição, cuja defesa o governante eleito jura fazer quando toma posse, é atingida em cheio pelas fake news. Foi essa a tônica do veredito do TSE e o ensinamento principal que ele traz às atuais e às futuras gerações. Que sejamos capazes de escutar os seus sinais, parafraseando o genial Alceu Valença.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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