Quem ama não mata: o julgamento da ADPF nº 779

Merecia tornar-se súmula vinculante, e, mais que isso, tornar-se assunto em sala de aula desde a mais tenra infância. Quem realmente ama não mata.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 05/08/2023 às 0:00
Rosa Weber "Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos" Foto: CARLOS ALVES MOURA/STF


Mesmo que um tanto quanto tardiamente, convenha-se, o Plenário do STF deliberou, à unanimidade, na ADPF nº 779 (relator: Ministro Dias Toffoli), que acusados de feminicídio não têm direito a alegar como tese exculpante a legítima defesa da honra.

Caminharam bem, é fato, os Ministros. Não se imaginava que o desfecho fosse diferente. Os princípios cardinais da dignidade, da proteção à vida e da igualdade de gêneros exorbitam até do texto constitucional, sendo valores filosóficos universais e atemporais, o que justifica a repulsa à violência pela condição de gênero, cujo pressuposto se limita à ideia de dominação, agravada às últimas alturas pelo ciúme e pela possessividade. Em resuma: trata-se de uma mentalidade medieval, atrasada e desumana. Uma violência em si mesma.

Discorrendo sobre o assunto para o Consultor Jurídico de 1/6/2023, Luiza Nagib Eluf, parafraseando Pedro da Mata Machado, vai direto ao ponto e àquilo que importa: "Não há nada no mundo que justifique o atentado contra a vida humana. A vida é o único bem que não se restitui. Acima do amor, da honra, do ciúme, da vingança, de todas as paixões da alma e de todos os instintos da carne, está o inviolável direito de viver".

A experiente articulista, todavia, muito adequadamente, questiona: como concluir como concluiu o STF somente agora, se há oito anos o feminicídio é crime? A resposta: por que os padrões machistas de comportamento que vigoravam antes da alteração legislativa persistem apesar dela. A legítima defesa da honra é desses absurdos que jamais deveriam ter vicejado em lei ou academicamente nas salas de aula ou doutrinariamente nos livros ou jurisprudencialmente nos tribunais. O monstro, porém, ganhou vida.

Observe-se o caso Ângela Diniz e à absolvição do seu assassino e então namorado, Doca, em 1979, crime que parou o Brasil. Talvez seja o precedente mais emblemático dessa tese que é puro extrato de misoginia. Deveria ser motivo de constrangimento na época e motivo de constrangimento hoje. Como entender a vítima colocada no banco dos réus e não seu assassino? Por que não deixar no século 19 o conceito, lá no fundo do baú de 1830, no Código Criminal do Império?

Desde 1948 é universalizado o direito à vida pela ONU. Conquanto se possa alegar que foi isso o que ocorreu de certa maneira no segundo julgamento de Doca Street, em 1981, no qual findou condenado a 15 anos de prisão, é espantoso que só mais de três décadas depois o Código Penal tenha reconhecido o feminicídio como crime hediondo, desbordo do homicídio. Mais espantoso ainda que outros tantos anos mais tarde é que o STF pela sua composição plena haja declarado a inconstitucionalidade da tese. O buraco da vergonha é mais fundo do que parece e esta a principal reflexão que o julgamento do último dia 1/8 impõe.

E que não se aponte na palavra final do STF um ativismo judicial que consequencializa um cerceamento ao trabalho dos defensores de réus nessa condição. Negativo. Não há julgamento justo se massacrada a memória da vítima, reassassinada depois de morta.

A tese da legítima defesa da honra não se escora em uma valoração criteriosa, detida, percuciente, da prova pelas partes e pelos jurados, como também não se discute em um contexto assim se o acusado se utilizou ou não dos meios cabíveis para repelir agressão injusta, atual ou próxima, a direito seu ou de terceiro. A tese se baseia, isto sim, no mais arraigado preconceito, daí por que escapa à norma positiva. Cuida-se de um problema cultural. Uma luta incessante.

Concluo citando trecho do voto da Ministra Rosa Weber, Presidenta do STF, que sedimentou a unanimidade obtida no julgamento do último dia 1/8: "Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina". Merecia tornar-se súmula vinculante, e, mais que isso, tornar-se assunto em sala de aula desde a mais tenra infância. Quem realmente ama não mata.

 

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado 

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