OPINIÃO

Superar a herança bolsonarista e reconstruir a segurança pública

A origem da crise da segurança pública não pode ser compreendida sem destacar o peso do legado descivilizatório do governo Bolsonaro nesta área

Cadastrado por

José Luiz Ratton

Publicado em 04/11/2023 às 3:00
O diagnóstico da letalidade policial fora do controle ou das diferentes e crescentes formas de domínio territorial por facções e milícias já são lugares comuns - Thiago Lucas

As crises da segurança pública são crônicas na sociedade brasileira. Os eventos violentos recentes que colocaram os estados do Rio de Janeiro e da Bahia sob os holofotes nacionais não são novidades, considerando a trajetória do recrudescimento da criminalidade que assola o país nas últimas décadas. O diagnóstico da letalidade policial fora do controle ou das diferentes e crescentes formas de domínio territorial por facções e milícias já são lugares comuns para quem acompanha o cenário da insegurança pública persistente neste país que se pretende cordial. Some-se a isso o fato de que as políticas públicas do setor têm sido caracterizadas pela tibieza, descontinuidade e tímidos acúmulos incrementais, tanto no âmbito federal, quanto nos níveis estadual e municipal.

Este é o contexto herdado pelo governo Lula, que tem sido instado a retomar o protagonismo na coordenação de uma estratégia nacional de redução da violência e do crime. Não é casual, portanto, que o Ministro da Justiça e da Segurança Pública Flavio Dino tenha se destacado tanto no primeiro ano do governo Lula, especialmente pela resposta imediata aos sucessivos episódios de exacerbação da violência e da insegurança
em diversas regiões do País.

Mas a origem da crise da segurança pública não pode ser compreendida sem destacar o peso do legado descivilizatório do governo Bolsonaro nesta área. Ao assumir o cargo em 2019, havia condições institucionais bastante favoráveis para a implementação de avanços na política nacional de segurança pública.

Havia um Ministério específico para o setor, a lei federal do SUSP que disciplinava a articulação de esforços entre os entes federados e uma fonte estável de recursos para financiar a política pública correlata. Ademais, estava em curso uma trajetória descendente das taxas de homicídios, provavelmente relacionada às tréguas e acordos provisórios e instáveis de grupos criminosos em vários estados importantes da federação e à implementação, descontínua, de programa de redução de mortes violentas em alguns estados, com ênfase
na reorganização da atuação policial e foco em investigação e gestão.

Contudo, o traço central do governo Bolsonaro foi a incapacidade de formulação e implementação de uma estratégia nacional de controle da criminalidade, seja por déficit cognitivo e organizacional, seja por pura falta de vontade política. Evidenciou-se nítido retrocesso na atuação da União no âmbito da segurança pública, dado que todos os governos que o antecederam, (FHC, Lula I e II, Dilma I e II e) Temer, apresentaram algum
tipo de atuação mais consistente nessa área.

A flexibilização do Estatuto do Desarmamento, iniciativa central da gestão Bolsonaro na segurança pública, contrariou todas as evidências científicas disponíveis e gerou efeitos perversos cumulativos, desde sua implementação. As facilidades geradas para a aquisição de armas e munições por parte dos CACs produziu o efeito previsível e indesejável de favorecer a construção de arsenais privados por organizações criminosas
as mais diversas.

Não bastasse isso, no seu governo a letalidade policial atingiu os maiores patamares da história recente do País. Entre 2019 e 2022 a média anual foi de 6.300 mortes decorrentes de intervenções policiais em todo o País. No governo Temer essa média ficou no patamar de 5.200 mortes e no segundo governo Dilma, a média foi de 2.900 mortes. Ademais, o discurso da mais alta autoridade da república, legitimou, inúmeras vezes, o uso da violência como conduta válida e desejável para enfrentar a criminalidade, favorecendo, no plano simbólico e cultural, o agravamento do fenômeno.

Não deixa de ser irônico concluir que a gestão bolsonarista, que chegou ao poder prometendo “resolver” a complexa questão da segurança com uma retórica obsessiva de lei e ordem, tenha contribuído tanto, de forma direta e indireta para um agravamento sem precedentes da situação do crime e da violência no país. É sobre esta terra arrasada que os setores democráticos e progressistas, muitos dos quais integrantes do atual governo, devem concentrar imediatamente seus esforços. A construção e a implementação de um
plano nacional de redução da criminalidade violenta devem estar no centro da agenda de prioridades do País.

Combinar o imediato e o estratégico, de forma eficiente e com presença da sociedade civil, coordenar, articular e fomentar as ações de governos estaduais e municipais e das polícias e convocar à participação o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Poder legislativo, em todos os níveis, é o mínimo que se espera para
que a barbárie bolsonarista seja superada.

Luis Flavio Sapori, Cientista Social, Professor da PUC-MG, e
José Luiz Ratton, Cientista Social, Professor da UFPE)

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