OPINIÃO

Geopolítica e conflito de interesses: o que explica a paralisia da ONU?

"E os pobres coitados acham que estão a salvo! Eles acham que a guerra acabou! Apenas os mortos verão o fim da guerra!".

Cadastrado por

Antonio Henrique Lucena Silva

Publicado em 05/11/2023 às 0:21
Conflito Israel-Hamas e a ONU - Thiago Lucas

No dia 31 de outubro se encerrou a presidência temporária do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão de maior relevância desse organismo internacional. A China assumiu a liderança neste mês de novembro e, em dezembro, será a vez do Equador. A agenda de discussões do Conselho durante o período de mandato brasileiro foi dominada pela guerra entre Israel e Hamas. A presidência do Brasil teve início em 1 de outubro e, logo em seguida, no dia 7 do mês ocorreu o ataque terrorista do Hamas no território israelente vitimando, até o momento, 1440 pessoas. Apesar dos esforços da diplomacia brasileira em aprovar uma resolução, como a do dia 27, que contou com 12 votos favoráveis, 1 contra (EUA) e 2 abstenções (incluindo a Rússia), ela foi barrada em virtude do veto americano. A alegação da comitiva americana é que o texto não fazia uma menção ao direito de autodefesa de Israel. Outras resoluções, propostas pela Rússia, e outros membros foram vetadas. A sensação que fica, perante o público, é que o Conselho de Segurança não aprova nada e está paralisado. Por que isso acontece?

Antes da ONU, outro órgão de segurança coletiva tinha moldado, no final dos horrores da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a intenção de preservar a paz e a segurança internacionais: a Liga das Nações. Formalizada em 28 de junho de 1919, ela tinha como funções a segurança, cooperação econômica e monetária e a execução dos dispositivos do Tratado de Versalhes. Apesar dos esforços do presidente Woodrow Wilson, os Estados Unidos não integraram a Liga, por causa do veto do senado à sua adesão. O órgão máximo era o Conselho, que tinha características de poder executivo. A votação se dava por consenso, ou seja, todos os países precisavam concordar com a resolução. A própria Liga vivenciou seus momentos de paralisia por causa da forma como ela estava desenhada. A instituição não foi capaz de evitar a invasão do Japão à Manchúria (parte da China) em 1931 e da Itália de Mussolini à Etiópia, em 1935. Rapidamente a Liga das Nações foi caindo no descrédito. A tomada de assalto da Polônia pela Alemanha Nazista e a União Soviética em 1939 seria mais um dos fatores que colocaria a "pá de cal" no organismo internacional que seria completamente extindo em 20 de abril de 1946. Próximo do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1943, na Conferência de Teerã, os países aliados concordaram em formar um novo organismo, que se propunha a ser mais eficiente que a Liga: a Organização das Nações Unidas.

A ONU, fundada em 24 de outubro de 1945, tem como norte a sua carta. Para entender a atual imobilidade do Conselho de Segurança, é necessário compreender como o seu sistema de votação está estruturado. No artigo 27, parágrafo 3, é explícito que: "As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes, ficando estabelecido que, nas decisões previstas no Capítulo VI e no parágrafo 3 do Artigo 52, aquele que for parte em uma controvérsia se absterá de votar." Note que a palavra "veto" não aparece, mas que é necessário que os membros permanentes concordem com a resolução. Caso um vote contrário, a resolução não passa.

E nas atuais votações? Por que nenhuma foi aprovada? A guerra entre Israel e Hamas, assim como da Ucrânia, geram choque de interesses estratégicos e geopolíticos que os membros permanentes, como Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia, usam o seu poder de veto para preservar os seus aliados. Podemos identificar que o mundo está se dividindo em dois blocos, ainda não claramente coordenado, de potências, mas que terminam se ajudando. De um lado, temos, desde a invasão Russa da Ucrânia, um alinhamento de Estados Unidos e a União Europeia e, de outro, Rússia, China, Irã e Coreia do Norte. Estados Unidos busca preservar o direito de defesa de seu aliado no Oriente Médio, Israel, enquanto os outros países têm interesses diversos. A Rússia, atolada na guerra, está num beco sem saída e dependendo da exportação de material bélico do Irã, como seus drones kamikaze, e munições da Coreia do Norte. O Irã financia e treina os terroristas do Hamas e do Hezbollah, fazendo uma "guerra por procuração" contra Israel. A China é uma das maiores beneficiárias das sanções contra a Rússia, comprando gás barato e exportando seus produtos industrializados. Nesse contexto, os vetos no Conselho de Segurança buscam preservar seus aliados de maiores problemas. Essa é uma das razões dos entraves e imobilismos que temos visto nas votações.

Dag Hammarskjöld, segundo secretário-geral, proferiu um famoso discurso em 1954: "A ONU não foi criada para levar as pessoas ao paraíso, mas para salvar a humanidade do inferno". Os interesses geopolíticos dos países terminam minando, perante o público, a confiança nas instituições internacionais e de suas ações como idealizado na frase do diplomata sueco. O problema do organismo não é "culpa" dele em si, mas dos países que o compõem. Com tudo isso, estamos mais próximos do que disse George Santayana no livro Solilóquios na Inglaterra: "E os pobres coitados acham que estão a salvo! Eles acham que a guerra acabou! Apenas os mortos verão o fim da guerra!".

Antonio Henrique Lucena Silva,  doutor em Ciência Política, área de estudos estratégicos (UFF) professor da UNICAP

 

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