Concluí o artigo da semana passada (26/11/23), usando como referência a recente obra Como salvar a democracia de Steven Levitsky&Daniel Ziblatt, os mesmos autores de Como as democracias morrem (2018).
Caso fossem escritos, hoje, é possível que não fosse alterado o conteúdo dos livros, mas constaria uma nota e rodapé assinalando dois fatos relevantes para o o avanço das forças políticas da extrema direita: na Holanda, a vitória de Geert Wilders, líder populista do PVV (Partido pela Liberdade) que obteve 37 dos 150 assentos e buscará aliança para governar tendo por bandeiras a rejeição aos imigrantes, a Islamofobia e um referendo sobre a saída da Holanda da UE.
O segundo fato: a vitória Javier Milei, ultradireita, é "tão contra tudo o que está aí" que ele se autodefine como anarcocapitalista, rebento ideológico do libertarianismo, espécie de contraponto utópico ao que seria o totalitarismo da força estatal que aniquila o indivíduo. O pai da ideologia, Murray Rothbard, propõe a ausência completa do aparato da força estatal e, uma vez ausente, chancela a lei do mais forte cujo trágico final, também, é o aniquilamento do indivíduo. A rigor, o anarquista é um "necrocrata!
Delírios à parte, é tempo de redobrar os cuidados com a democracia e atentar para as ideias de proteção a partir da experiência dos cientistas americanos quando afirmam: "Um presidente autocrático sozinho jamais é suficiente para matar a democracia. Os autocratas precisam de cúmplices - políticos tradicionais que o cientista político espanhol Juan Linz os chama de democratas semileais - políticos tradicionais que toleram, ajudam e protegem os autoritários".
O autor citado, Juan Linz (1926-2013), foi um incansável cientista social e político e nos deixou portentosa e diversificada herança. O núcleo central do seu trabalho - autoritarismo e transições para a democracia - exerceu uma influência internacional nas estratégias de abertura política. O exemplo espanhol, pelo qual não escondia o entusiasmo, definiu como uma "transição inovadora, lógica, elegante".
No "caso Brasil", publicou preciosa análise (1973) na coletânea organizada pelo amigo e parceiro, o brasilianista Alfred Stepan (1936-2017), salientando que a "situação autoritária", legitimada pelo fôlego do crescimento econômico, seria superada pelo que chamou de "transição lenta". O arquiteto da abertura política no Brasil, General Golbery do Couto e Silva, afirmam os biógrafos, era um leitor de Juan Linz.
Qual o equivalente brasileiro ao democrata semileal? Para compreender este estranho ator político, é fundamental transcrever a explicação que os autores americanos encontram nas ideias de Linz: "Diante de uma ameaça autoritária, políticos comprometidos com a democracia - que Linz chama de democratas leais - fazem três coisas: condenam publicamente o ato antidemocrático e agem para responsabilizar os culpados ainda que sejam aliados ideológicos; expulsam as figuras autoritárias de suas fileiras, recusando-se a nomeá-las ou indicá-las para cargos públicos; e trabalham com forças pró-democracia de todo o espectro ideológico para isolar e derrotar extremistas antidemocráticos".
Por sua vez, "democratas semileais não fazem nada disso: em vez de expulsar figuras autoritárias, eles as toleram, entram em acordo e até colaboram discretamente com elas; em vez de repudiar o compartilhamento autoritário dos seus aliados, minimizam ou aceitam esse comportamento, ou simplesmente se calam; recusam-se a trabalhar com rivais ideológicos para isolar autoritários - mesmo que a democracia esteja em perigo".
Ouso desconsiderar a semilealdade na relação com a democracia. O crescimento dos extremos políticos aprofunda a polarização e mata por asfixia as regras do jogo democrático. As extremas eliminam do espectro - centro-direita e centro-esquerda -, inimigas que são de uma sociedade aberta em que as liberdades sejam exercidas, os poderes limitados e a Política praticada em nome do interesse comum. Mais do que nunca a lealdade à democracia não pode ser relativizada.
Na comparação dos dramáticos episódios dos janeiros de 2020 e 2022 nos EUA e no Brasil, os autores têm razão: a direita democrática brasileira reconheceu a lisura e a legitimidade do pleito; a direita americana, não aceitou a derrota. No entanto, a deles é orgânica, tem abrigo no Partido Republicano e gira em torno de uma personalidade populista; a nossa, inorgânica, se abriga em dezenas de partidos e sem lideranças que unifiquem forças democráticas, ou seja, a direita americana segue forte, o trumpismo também; a direita brasileira é expressiva, porém o bolsonarismo enfraqueceu.
A recente experiência tem demonstrado: defender a democracia é uma tarefa cívica, desgastante, exaustiva, mas não precisa de desprendimento heroico senão uma peleja cotidiana com a força das ideias, a persistência do ativismo e o compromisso ético com as novas gerações.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco