"Por trás de todo homem bem sucedido, há uma grande mulher". A expressão, comum no imaginário político brasileiro, tem a conotação de enaltecer o papel da figura feminina na carreira política do seu esposo (ou filho, irmão, parente em geral), mas, na verdade, funciona como um reforço de que à mulher não cabe protagonismo. Ela "até" age, contudo os resultados não lhe pertencem. Na esteira dessa cultura, há no Brasil uma figura, inspirada no modelo dos Estados Unidos, que se transformou em um título oficial: a primeira dama, conferido às esposas do chefe de estado, que se aplica também ao executivo estadual e municipal.
No Brasil, historicamente, as primeiras damas estão associadas a projetos sociais, ainda que não haja uma determinação legal para isso. Esse formato de atuação teve início em 1915, conforme consta nos registros históricos, com a promoção de uma festa com fins de arrecadar recursos, por Maria Pereira Gomes, esposa do presidente Venceslau Brás, a serem destinados às pessoas afetadas com a seca no Nordeste. E não parou por aí: tornou-se presidente do comitê de mulheres da Cruz Vermelha Brasileira, criado por um grupo de senhoras da sociedade carioca, para arrecadar alimentos e medicamentos às vítimas da gripe espanhola e moradores pobres.
Dessa maneira, houve a associação entre primeiras damas e assistência social, que ganhou um reforço importante a partir de Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, uma das responsáveis pela criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), para ajudar as famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial. A entidade se converteu em uma grande instituição de assistência social, até 1995, quando denúncias de desvios de verba na gestão de Rosane Collor, esposa de Fernando Collor, levaram à sua extinção.
Outras primeiras damas que tiveram destaque foram Sarah Kubitschek, que idealizou a Fundação das Pioneiras Sociais, com atuação em dez estados brasileiros; e Ruth Cardoso, que fundou e presidiu a diretoria da Comunidade Solidária, com foco no combate à pobreza, trabalhando junto com programas sociais prioritários existentes nos ministérios.
Sem a pretensão de reduzir a importância dessas iniciativas, o debate, à luz da agenda atual, permite olhar sob novos ângulos o papel da mulher na sociedade. Ao mesmo tempo em que "primeira dama" é um título, e não um cargo eletivo, quais os formatos ideias e os limites dentro de um governo? É fato que mulheres que têm visibilidade exercem, naturalmente, influência sobre outras, contribuindo na visão sobre questões sociais e afirmação de valores.
Na linha conservadora, Michelle Bolsonaro deu visibilidade a pautas de costume, além de fortalecer ainda mais a força do segmento evangélico dentro do governo do seu marido, Jair Bolsonaro. Na transição para o governo atual, Rosângela Lula, conhecida como Janja, passou a ser protagonista em diversas ocasiões, inclusive afirmando ser necessário repensar o papel da primeira dama.
Recentemente, a conta de Janja em uma rede social foi invadida por um hacker, que fez publicações ofensivas a ela, ao presidente Lula e ao ministro do STF Alexandre de Moraes. Na era das redes sociais, isso é uma comprovação de que a primeira dama está longe de ser um ator político restrito aos bastidores. A projeção política de Michelle Bolsonaro em nível nacional também o é. Alguns defendem limites claros para as esposas, já que não são mandatárias de cargo eletivo. Outros acham que elas deveriam entregar mais à sociedade.
O que interessa, talvez, é que, sem perder de vista os limites que todos devem estar submetidos no acesso às benesses de um mandato, possamos compreender o incômodo com o protagonismo de primeiras damas como parte de uma resistência mais ampla à mulher nos espaços de poder. Seu papel não é maior nem menor. O debate é sobre representação, pioneirismo, liderança.
Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política.