Dizia Fernando Pessoa (no Desassossego), “Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível, numa cova a que se não pode descer”. O que vem a propósito do amigo querido Zé Cláudio, que agora nos deixou.
E começo por lembrar um belo texto seu, publicado em 2014 (Lugar de Morrer), em que diz: “O lugar de morrer tem importância fundamental para nosso sossego. Felicidade, segundo Sto. Agostinho, só no outro mundo. Morrer, se morre em qualquer lugar, dirão. O que interessa é o lugar de viver, e viver bem. Mas eu direi no entanto que só quem sabe o lugar de morrer, quem já escolheu onde terminar os seus dias, onde ficar até que a morte nos separe, demonstra maturidade para viver”.
Seguindo nessa trilha vale dizer que Zé Cláudio, nascido em Ipojuca, rodou pelo mundo e veio baixar âncora em Olinda. Só que, no coração, nunca saiu de Ipojuca. Ou, talvez, Ipojuca é que nunca saiu dele. E pela vida foi sempre a mesma criança, na venda que era do pai, curioso com o mundo que viu com seus próprios olhos.
Como escrevo mais de uma semana depois de sua perda, e tantos já se manifestaram, prefiro fazer diferente. Lembrando nosso grande poeta Marcelo Mario de Melo (se esquecer o “de”, ao falar seu nome, ele briga comigo), no seu Manifesto de Esquerda Vicejante (tive a honra de escrever o prefácio desse grande livro), em que diz: “Devemos lembrar nossos mortos não pelas chagas de seus martírios, mas por seus jeitos de rir”. E assim farei, agora, lembrando um Zé Cláudio que continua vivo em nossos corações.
OITI CORÓ. Era a única pessoa do planeta que gostava dessa fruta estranha, com gosto de areia. Um dia me deu um pé dizendo que, na sua casa, não frutificava. Pediu que plantasse em Gravatá. Como ouvi dizer que certas plantas só funcionam com um outro pé do lado, para polinizar, comprei mais 5 e fiz pequena floresta. Engraçado é que não se pode tirar o fruto no pé, tem que esperar apodrecer e cair. Assim fiz, sempre. E mandava, para ele, cestas de frutas quase podres. Como agora já não tenho para quem mandar os tais oitis corós, caso alguém aprecie, por favor me forneça endereço que ao menos tenho destino para a produção.
POETA. Vivia recitando, com graça, um poema horroroso, Que fim levou Doroteia? Louvando o órgão reprodutor de certo cortador de cana que morava perto de Ipojuca. Há quem entenda?
Usina, só Catende
Caminhão, 13 de maio
Mais seu Júlio no charuto
Benvenuto no caraio.
YEVGENY YEVTUSHENKO. Chegou para uma visita na sua casa, em Olinda. Conversaram em espanhol, que o romancista russo aprendeu quando viveu na Ilha (1964), redigindo roteiro para filme de propaganda – Soy Cuba. No meio do encontro levantou e, na parede da sala bem limpinha, escreveu com aquele carvão de marcar os quadros
– La felicidad es el sufrimiento que se cansó.
E continuaram na prosa. Depois que saiu, Zé Cláudio repintou a parede com cal branca. Sem mais registros, afora lembranças, daquele dia mágico em que o autor de Autobiografia precoce passou pela casa.
71. ANOS. Quando fez 71 anos respondeu pergunta de um jornalista (O que é fazer 71 anos?) com as duas primeiras frases dessa décima. Sem nem perceber que tinham a métrica das cantorias. Completei os versos no próprio jornal e mandei, para ele,
– “71 é desgraça
A pior coisa do mundo”
Nosso corpo vagabundo
Se arreia em qualquer praça.
Mas Zé Cláudio sua graça
Atente ao que vou dizer
Se alternativa é morrer
Ir para lugar nenhum
Pior que 71
Na verdade é nem fazer.
E ainda bem que nos deixou só 20 anos depois disso.
CAETANO VELOSO. Ligou Caetano e marcaram encontro, na sua casa, às 3 da tarde. Dando-se que, como todo bom baiano, chegou tarde, já escuro, e perguntou
– Zé Cláudio está?
Cícera, que fazia uma sopa, respondeu sem maiores preocupações
– No dentista.
– Posso esperar por ele aí dentro?
– Claro que não.
Uma resposta natural, para ela. Pouco antes, por exemplo, não deixou entrar Chico Buarque. Só que Chico se conformou logo. Pedindo apenas o acesso, à casa, para uma amiga que precisava fazer suas necessidades.
– Ela que faça aí fora mesmo.
O músico decidiu partir. Só que teve a infeliz ideia de não ficar com aquele taxi no qual chegou. Já se preparando para descer o ladeirão, com risco até de ser assaltado, insistiu
– A senhora, pelo menos, diz a ele que estive aqui?
– Digo sim.
Desconfiado, e sem certeza de que seu recado seria mesmo transmitido por aquela mulher tão estranha, fez uma última pergunta
– A senhora desculpe mas sabe quem sou?
– Sei. É Caetano Veloso. Mas prefiro Tarcísio Meira.
Já eu, diferente de Cícera, e mais que Caetano, Chico, ou Tarcísio, prefiro mesmo é Zé Cláudio. Sem nenhuma dúvida. E, tendo começado com Pessoa, encerro também com ele (igualmente no Desassossego): “A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final”. Foi agora. O fim da frase e de sua bela trajetória. É pena. Saudades. Viva Zé Cláudio.
P.S. Bom Natal, para todos.
José Paulo Cavalcanti, advogado