OPINIÃO

A longa noite do golpe e a luz do dia seguinte, 60 anos depois

A democracia pode ser imperfeita, como o é, mas simboliza também esperança, longe de cujo útero predomina apenas sofrimento, antítese daquilo que representa esperançar.

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 24/02/2024 às 0:00 | Atualizado em 25/02/2024 às 23:26
Golpe miliar de 1964 no Brasil: repressão a estudantes era comum - REPRODUÇÃO/EVANDRO TEIXEIRA

Visto por segmentos conservadores daqui e do exterior como um político à esquerda demais e inconfiável, João Goulart era rotulado de comunista, termo à época sinônimo de tudo de pior na natureza humana. Tentaram o que puderam para impedir que assumisse a Presidência, o que só não prosperou porque, às pressas, se estabeleceu no País um regime parlamentarista.

A conspiração para defenestrar Jango quis frear a ascensão dos movimentos sociais. Findo 1963, mergulhado em um quadro convulsionado, o Brasil assistiu em setembro à Revolta dos Sargentos (proibidos pelo STF de ocupar cargos no Legislativo) e em outubro a uma proposta de estado de sítio apresentada pelo Governo e recusada por todos os grandes partidos. Finalmente, em março de 1964, veio o Comício da Central do Brasil, que mobilizou milhares e foi interpretado como uma ruptura de Jango com a política de conciliação que muitos imaginavam que mantivesse. Todo esse caldo, em cozimento a fogo alto, ferveu, transbordou e o resultado é o que todos conhecemos.

Avizinhando-se a sexta década dessa que é uma das mais infelizes páginas da história, que custou vinte e um anos a ser virada, a sociedade tornou a visualizar a beira do precipício do autoritarismo no último 8 de janeiro de 2023. Uma engendração cujos bastidores talvez ainda não tenham sido completamente documentados, mas cujas responsabilizações criminais já se anunciam. A baderna pode até ter sido o método e o vandalismo a sua assinatura, mas foi a ruptura democrática o que se tencionou fazer, deturpando-se a lógica segundo a qual, se ninguém é obrigado a gostar do resultado das urnas, certamente o é a respeitá-lo.

Não era eu nascido quando o golpe aconteceu. Cheguei depois, mais precisamente no primeiro quarto de governo Geisel, que se caracterizou pelo início da transição para a volta do poder aos civis. Portanto, não senti em "tempo real" os horrores das censuras, das torturas, das prisões para averiguação, das cassações de mandatos (inclusive de Juízes da Corte Suprema) e das perseguições ideológicas. Mas sou neto de um avô que, dignificando a sua beca de advogado criminalista, foi um dos alvos dos opressores. Em paralelo, com o tempo, li tudo o que pude a respeito.

Quando nos idos de 1992 escolhi abraçar o Direito como eixo da minha formação universitária, iniciando-a no ano seguinte na querida Unicap, ingressando em seguida (1998) nas fileiras da advocacia, estava em discussões o que mais à frente se tornaria (1994) a Lei Federal 8.906, cognominada de o novo Estatuto da OAB, derivação da Constituição Cidadã e seu artigo 133. Apoiado nesses normativos cardinais, repeti o juramento de defesa da democracia, compromisso, por sinal, que busco reafirmar todo santo dia ao acordar e que me tranquiliza quando avanço para completar, em dezembro, cinquenta primaveras.

Devo confessar enorme dificuldade, pode-se mesmo dizer invencível, de compreender as explicações que circulam de chancela à via da ruptura da lógica democrática para "salvação coletiva", da Pátria e/ou da família. Para mim é a mesma coisa de querer sobrepor o argumento da força à força do argumento. Uma reviolentação em looping. Enquanto advogado, função essencial à Justiça, tenho o dever, inclusive, ético, de ser mais rigoroso com aquilo em relação ao quê empenho minha palavra. Se prometi lutar pela democracia, será essa a minha profissão de fé, e o que farei, inclusive somando para a correção dos seus equívocos.

Deixando em fecho como sugestão reflexiva o documentário "Os Advogados contra a Ditadura", de 2014, direção de Sílvio Tendler, rememoro os que, na trincheira da advocacia, resistiram à ditadura e combateram o bom combate pelas liberdades, arriscando suas vidas não raro, defendendo, com frequência gratuitamente, os alvos da violência política, pegando carona nas palavras do saudoso Paulo Evaristo Arns. Considero que honrar a memória é respeitar a história. Por isso escrevo, digo e reafirmo: nunca mais outra vez. A democracia pode ser imperfeita, como o é, mas simboliza também esperança, longe de cujo útero predomina apenas sofrimento, antítese daquilo que representa esperançar.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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