Na vastidão da aldeia global, divergir pode muitas vezes ser não somente um exercício inócuo, como um esporte de risco, quiçá uma atividade insalubre. Os tempos têm apontado para isso.
Divergir, filosoficamente, sempre foi contrapor um argumento a outro, igualmente significativo; e não, como hoje, declarar uma guerra.
Divergir também não é desqualificar, o que pode ser externado por linguagem indireta, como na ironia, no deboche, no sarcasmo, não obrigatoriamente por palavrório chulo.
Estar aberto à opinião contrária é uma solução sempre alvissareira. Se insere no campo fértil das liberdades; todavia, ao opinar contra, promovendo equivalência com a liberdade de expressão, não se pode malferir o decoro e a urbanidade.
Escrevendo para a Revista Forbes em 18/10/2022, o médico psiquiatra Dr. Arthur Guerra, professor da USP, disse: "Ironia e piadinhas costumam ser uma resposta muito comum de quem discorda do que o outro está falando. Acontece que isso demonstra menosprezo em relação à posição contrária". No texto, ainda, cuja leitura, aliás, aconselho (pode-se encontrar no Google), o autor oferece oportunas dicas preventivas, que podem ser assim sintetizadas:
(1) "leia" o perfil comportamental do interlocutor à frente: este pode ser da tipologia/espécime bélica, para quem tudo é pretexto para brigar. Não compensa pagar para ver, aceitando a provocação de quem age assim. Melhor silenciar ou então dizer que entende o argumento. Ser cortês;
(2) se, diante da opinião dada, com parte dela o sujeito concorda, que se atenha a essa parte, e depois, exponha os aspectos em relação aos quais discorda;
(3) Ironias e brincadeiras refletem menosprezo à posição contrária. Se você diverge do seu interlocutor, não o faça nem de uma forma, nem de outra;
(4) Não é só por pelo discurso que se pode discordar, mas também pela "linguagem não verbal", como nas expressões faciais. Se a ideia é manter a cordialidade, ainda que discordando, não cruze os braços, não faça cara feia, não revire os olhos. Isso é ser hostil. Não é divergir;
(5) Muitas pessoas adotam um discurso inflamado porque passaram por certa situação que as levou a isso. Antes de reclamar, porém, pergunte-se: como você se sentiria se estivesse no lugar daquela pessoa?;
(6) Abrace o mantra da humildade intelectual. Conscientize-se de que ninguém é dono da verdade, nem detentor de todo o saber.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, respeitadíssimo criminalista que presidiu a maior Seccional da OAB, também se aventurou a abordar esse tão delicado tema, discorrendo sobre o que nominou de "preconceito contra o pensar diferente", desde que esse pensar esteja a priori justificado.
Em artigo para o jornal O Estado de São Paulo, Mariz de Oliveira afirmou: "Não concordar com algo dito basta para que o dizente passe a ser considerado adversário ou desafeto. Não alguém que tome posição diversamente, mas um inimigo. Nesses embates não há protagonistas de um diálogo, mas sim de um monólogo raivoso e irracional".
É justamente esse o ambiente tóxico que temos todos inspirado e expirado, e que se agrava a olhos vistos, nutrido pela polarização ideológica, que, no Brasil, se projeta das famílias aos aplicativos de bate-papo, afastando as pessoas umas das outras como se conviver fosse torturante e como se estivessem os interlocutores em um ringue, o que só estremece, ressente, embrutece, infelicita.
Ao lembrar o vigésimo aniversário de sua libertação da prisão política, o saudoso Nelson Mandela contou como um amigo reforçou a sua fé na humanidade. Esse amigo foi o agente penitenciário Christo Brand, que serviu ao regime que manteve Mandela trancado em uma pequena cela por 27 anos. Brand e Mandela preservaram secreta sua amizade graças a um código que somente os dois conheciam. Mandela dava conselhos de sabedoria a Brand e Brand ensinou Mandela a falar africâner. Os destinos de ambos tinham tudo para consolidá-los inimigos. Deu-se o contrário.
Divergir em um debate sadio é densificá-lo, nunca o esvaziar. Cito o próprio Mandela: "Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar". É essa a escolha que faço. Qual é a sua?
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado