A história é da época em que havia jornal de papel. Um homem pediu ao jornaleiro que premisse a campainha quando fosse entregar o tabloide. Justificou: Moro sozinho e tenho medo de morrer e ninguém dar por isso. No dia em que eu não abrir a porta, chame a polícia.
Quase se repetia o conto do jornaleiro com a socialite carioca Regina Gonçalves, 90. Na versão folhetim, a condômina do edifício ao lado do Copacabana Palace viveu um “affair” com seu motorista. A dedução estaria correta se não existisse a alegação de cárcere privado. Nas palavras da “lady”, fugir do algoz foi uma necessidade. A escapada aconteceu pela porta dos fundos, auxiliada por um taxista que a transportou até a morada do irmão. Todavia, alguns fatos ficaram sem aclaramento: o irmão sentiu alguma falta da socialite nos últimos dez anos? E os vizinhos – frequentadores contumazes dos ricos eventos promovidos pela bilionária?
A justiça brasileira usou duas decisões antagônicas: concedeu medida protetiva a favor da idosa e tutela provisória em proveito do motorista. Um contrato de união estável – que a anciã afirma não haver assinado – é o pivô da questão. Ele vem permitindo ao parceiro o controle da vida financeira da anciã. Direito é isso mesmo: duas cabeças, dois raciocínios, duas vontades, duas sentenças. Nada é absolutamente certo ou errado.
A verdade é que estamos no apogeu da “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra com igual título. Corresponde a um estádio da sociedade capitalista identificado pela interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. Sábado 04, por exemplo, Regina abriu as portas do seu rico apartamento para a alta sociedade. Aconteceu no dia do “show-ritual” de Madonna.
As luzes do palco, nas areias de Copacabana, se abriram com uma hora de atraso para anunciar a entrada da deusa. Enquanto Madonna recebia mais de 1 milhão e meio de fanáticos, Regina recebia 100 arrivistas para o seu “fly show” – moscas fascinadas pelo mel reluzente e açucarado. Bastou que a televisão construísse, como registra Debord, a imagem dos produtos e convertesse a bilionária e a artista em artigos consumíveis.
Com a divulgação das imagens pela mídia, deixei de acreditar na existência do “fato”. Substituí a palavra pelas expressões “narrativa pessoal”, “interpretação subjetiva” e “versão-dúctil”. O “fato” é algo inexistente em seu estado puro. Cada pessoa dele faz uso com auxílio de dispositivos ópticos diferentes. O cérebro goza da capacidade de iludir, embaciar, distorcer e mudar para melhor até mesmo os entulhos da vida. Também os olhos podem se contentar, como se fosse um vício em droga, com as transgressões eróticas e fantasias bizarras dos seus ídolos de barro. Afinal, tudo é possível porque inexistem regras, fronteiras, pecados e ilicitudes no sagrado. O palco de uma diva e o salão de uma bilionária são espaços despojados de sofrimento, clausura, doença, expiação e limites.
O fato também é perturbador e inquietante. Pensemos no ex-motorista José Marcos, de 53 anos. Dizem que ele esvaziou os cofres com joias da bilionária e “cuidou” dos haveres bancários da companheira. A imagem do ex-motorista na televisão não admite essas falhas de caráter: rosto bonito, fidalgo, circunspecto, embora o olhar estivesse sempre fugindo da câmera. José Marcos assegurou que o casal não manteve, no tempo de união, relação sexual. Confessou, contudo, que dormia enlaçado com Regina. A imagem repassada na televisão foi de um conto de fadas para êxtase de Platão: um par amoroso, afetuoso e ternurante; um homem abnegado, generoso e digno do comercial de um condomínio de luxo ou de um creme para rejuvenescimento. Estas foram as representações, entre muitas, vendidas para uma sociedade ávida por histórias pedregosas.
Admiti, por impulso, que a idosa pode ter se rebelado com o jejum sexual e optou por uma guinada de 180º - vestiu uma roupa de grife, sentou na acolchoada cadeira do salão do apartamento de luxo e ficou a sacar da memória as experiências jubilosas do passado. Descobre, de pronto, que o amor é quase uma sentença carente de renovação, esperança e epifania.
A televisão jogou com duas imagens antagônicas: a de Madonna e a de Regina. Na primeira, havia um público desfeito em emoção e lágrimas, esquecido da sua vidinha prosaica ou vulgar; uma multidão malcontente com o distanciamento da mulher impudica; uma plateia insaciável pelo espetáculo lascivo de masturbação e sodomia. Tudo mais invasivo e perverso do que as imagens da cidade contida no Livro bíblico do Gênesis. O capitalismo, a sociedade do espetáculo, o luto, a melancolia (Freud), os amores líquidos (Zygmunt Bauman), o niilismo (Nietzsche) e o narcisismo são referenciais para onde se volta a bússola substantiva do homem na direção dos valores que estão sendo estilhaçados ao longo do tempo.
Dayse de Vasconcelos Mayer é professora universitária e advogada