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Ascenso, o homem e o poeta

A vida de Ascenso eleva e dignifica a inteligência pernambucana. Ele, também, denso e imenso, um modelo de humildade e benquerença.

Publicado em 04/02/2025 às 0:00 | Atualizado em 07/02/2025 às 12:16
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Este ano, o calendário histórico-cultural de Pernambuco assinala os 130 anos de nascimento de Ascenso Ferreira, nascido em Palmares (9/5/1895), e falecido (5/5/1965), há 60 anos, no Recife, cidade onde ele fixou a sua obra.

Celebrar essa efeméride deve ser um preito de saudade e de justiça histórica e literária, que incumbe a todos nós, em particular às escolas, comemorar e estudar a grandeza do nosso Ascenso que é o símbolo da união da cultura popular e erudita e representa, com relação à literatura pernambucana, não apenas o grito de modernismo de 1922, mas, sobretudo, a música de uma poesia descompromissada com a forma tradicional.

Nos meus verdes anos, conheci o imenso poeta de Palmares, homenzarrão, dirigindo um jipe com os seus dois metros de altura e o seu chapéu à maneira dos sombreiros mexicanos, e, em momentos diferentes, na vitrola, por iniciativa do meu pai, escutava, eu e os meus irmãos, o próprio poeta, recitando os seus versos, alguns cantados por ele.

Ascenso é autor de quatro livros de poemas: Eu voltarei ao sol da primavera, Cana Caiana, Catimbó e Xenhenhém, além de um ensaio sobre folclore, todos consagrados pelos críticos literários e pelo gosto popular de tantos e quantos que começaram a ler e ouvir o artesão da palavra escrita e falada.

No Cais da Alfândega, contemplando o rio Capibaribe, está a escultura do grande poeta que dá grandeza ao bairro na sua transformação em poesia.

Ascenso participou de vários congressos de escritores, sempre como palestrante, dentre os quais, em 1955, em Goiana, quando fez amizade com Pablo Neruda.

Ascenso, um dos grandes de 1922.

Pelo que se sabe, Ascenso Ferreira e Mário de Andrade, este de São Paulo, mantiveram correspondências assíduas, contribuindo, por certo, para as inovações da criação humana, dando sequência ao Movimento Modernista Brasileiro de 1922.

Ascenso é o momento em que o Brasil se destaca em suas paisagens interioranas e busca a língua brasileira de que falava o também poeta pernambucano, Manuel Bandeira.

É, por igual, o instante do verso sem rima, sem métrica, poema em harmonia com o ritmo do homem nordestino.

Ele, o poeta, entre os canaviais e os engenhos.

Homem dos tempos das usinas de Açúcar, dos antigos engenhos, numa poesia profundamente oral soube ser a união da língua falada com a língua escrita, fazendo da simplicidade o seu estilo e o seu modo de ser.

"Felizmente à boca da noite,

Eu tinha uma velha que me contava histórias...

Lindas histórias do reino de Mãe-d'água...

E me ensinava a tomar benção à lua nova."

Nesse fragmento está Ascenso na sua inteireza. Homem bom e simples. Um grandalhão que se impunha pelo tamanho, mas cativava pela doçura da sua mensagem humanística e reveladora do gosto do povo. De alma leve, Ascenso, com a sua poesia, trazia o cheiro do povo e da sua terra, a ponto de ter poetado, como se referia Mário de Andrade e como se lê a seguir:

"Folha verde - meninice,

deliciosa meninice das gentes de minha terra,

que eu tanto amei e senti..."

Essa a aprendizagem especial do poeta de Pernambuco, quando retrata o estilo do povo, a tal ponto que possa até fundir a sua originalidade, quando em contato com elementos da sabedoria popular.

É dele o poema:

"Hora de comer - comer!

Hora de dormir - dormir!

Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?

- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!"

Sim, inovador da poesia, por levar a ela tudo que inspira na língua falada do Homem do Nordeste.

Leia-se, a seguir, que beleza de versos interpretativos de uma situação talvez semelhante à realidade, em priscas eras, da vida interiorana, bem nordestina:

"Entra pra dentro, Chiquinha!

Entra pra dentro, Chiquinha!

No caminho que você vai

Você acaba prostituta!

E ela:

- Deus te ouça, minha mãe...

Deus te ouça...!"

Essa compreensão da língua como um fenômeno sempre vivo não escapou a Ascenso, daí por que não hesitou em transcrever na sua obra essa língua do povo pernambucano, a ponto de os seus versos representarem um autêntico glossário da língua dita popular.

Entre livros e maracatus, ele estudava a pulso.

Avesso aos estudos e às normas escolares, Ascenso se conflitava entre as brincadeiras de roda, de cabra-cega, e as injunções do bê-a-bá das letras e outras regras e fórmulas, como se fosse um predestinado à arte de criar, com as palavras, por vezes musicalizadas, os anseios e costumes da nossa gente humilde.

No seu poema "Minha Escola" chegou a dizer em versos:

"A escola que eu frequentava

Era cheia de grades como as prisões

E o meu mestre, carrancudo como um dicionário.

Complicado com as matemáticas;

Inacessível com os Lusíadas de Camões."

Essa a escola dos "longes da sua infância," como gostava de aludir Carlos Drummond, quando se referia ao seu tempo de criança. Esse modelo de escola fechada, esotérica, intransponível, ainda bem que está ultrapassado no tempo histórico-social.

Se Ascenso Ferreira não foi assíduo e estudioso, interrompendo a sua formação acadêmica, com certeza foi um mestre da palavra, intérprete fiel da sabedoria popular, além de profundo nas suas lições humanísticas.

A vida de Ascenso eleva e dignifica a inteligência pernambucana. Ele, também, denso e imenso, um modelo de humildade e benquerença. O seu talento e as suas virtudes são legados que precisam ser cultuados para viver enquanto vivermos e formos dignos dessa valoração humana.

Roberto Pereira foi secretário de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco e é membro da Academia Brasileira de Eventos e Turismo.

 

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