Um abismo entre pontes

Na realidade cotidiana, a população mais pobre é flagrantemente esquecida, merecendo, na maioria das vezes, menções burocráticas em relação ao desespero que a acomete
JC
Publicado em 09/05/2023 às 22:19
Em reportagem de Katarina Moraes, o JC trouxe a situação persistente após um ano do incêndio da comunidade, no Pina Foto: GABRIEL FERREIRA/ JC IMAGEM


Com a geografia plana e a presença de morros, o Recife é uma cidade marcada por abismos. E os abismos têm surgido e crescido na capital pernambucana, porque o abandono político e a indiferença social corroem a base humana do município, num fenômeno de omissão que se espalha pelo território da Região Metropolitana. O cenário se aprofunda com a falta de vozes em defesa dos desassistidos, invisíveis e vulneráveis, apenas lembrados como imagem passageira nas épocas de campanha eleitoral, a cada dois anos. Na realidade cotidiana, a população mais pobre é flagrantemente esquecida, merecendo, na maioria das vezes, menções burocráticas em relação ao desespero que a acomete.

Vozes como a de Dom Hélder Câmara, para quem “não basta abrir os olhos para olhar”. É preciso enxergar o mundo com os olhos de dentro. Na Igreja das Fronteiras ou no Palácio dos Manguinhos, Dom Hélder acolhia os pobres com generosidade, afeto e se possível, comida. O olhar empático, caridoso é o início da realização da esperança. Não há esperança no meio do esquecimento e do abandono – não há esperança no fundo de abismos. Para o ex-arcebispo de Olinda e Recife, a pior bomba era a da miséria, pior do que uma bomba atômica. E os governantes da América Latina, dizia ele, estavam, preparando essa explosão, mesmo que alguns não percebessem, na segunda metade do século passado.

A miséria do tempo de Dom Hélder não diminuiu, se agigantou no Recife. E as condições de cuidado dos miseráveis nunca foram tão precárias. Talvez falte um Dom Hélder para dizer o óbvio, com palavras e gestos. É difícil compreender a desassistência, por parte do poder público, de uma comunidade consumida pelo fogo, um ano após sua destruição física. A comunidade “Entre Pontes” não se transformou num abismo, no entanto, após o incêndio. Já era abismo. E continua sendo. As palafitas que sustentavam a miséria se foram, mas o descaso permanece no mesmo lugar.

Em reportagem de Katarina Moraes, o JC trouxe a situação persistente após um ano do incêndio da comunidade, no Pina. Junto com a fumaça, muitas promessas foram deixadas no ar. Era só fumaça. A indenização de R$ 1.500 por família deu para suprir necessidades emergenciais, mas não demorou a ser consumida. Ex-moradores ouvidos pela repórter mostraram que seguem “tão abandonados quanto o local onde moravam”, nas palavras de Katarina Moraes. De fato, eis o ponto: o abandono não é novidade na vida deles, e uma tragédia comunitária não anulou a outra, maior e mais antiga: a tragédia da omissão coletiva traduzida pelo não fazer dos governos que deveriam cuidar, sobretudo, dos que mais precisam de cuidados. Mas preferem fazer outras escolhas, bancar outras prioridades.

A renovação do auxílio-moradia para famílias que tiveram suas casas queimadas em incêndios no Recife, na perenização do puxadinho burocrático emergencial, foi mais um sintoma do abismo que separa o poder público da realidade. Chega-se ao cúmulo de um negacionismo da gestão que garante estar fazendo o que ninguém vê acontecer. Se em 1967 Dom Hélder Câmara já estampava as páginas do JC, dizendo-se um “pastor revoltado com a situação sub-humana do Nordeste”, o abismo entre pontes na paisagem recifense, agora, realça o quanto estamos distantes do olhar necessário para cuidar de nossa gente.

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