Abuso de poder também é ameaça

Conceder mais poder aos juízes e à União pode ser um caminho arriscado em esquina autoritária
JC
Publicado em 23/07/2023 às 0:00


Com base nos preparativos golpistas insuflados nos últimos anos, que não se consumaram, mas culminaram num ato de invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro, e no bloqueio de diversas estradas pelo país, o governo Lula pretende apresentar projetos de lei que objetivam, supostamente, prevenir atentados à democracia. A começar pela redução do acesso a armas e munições, revertendo as facilidades concedidas na gestão passada, de Jair Bolsonaro. Até aí, o consenso se alinha à sensatez: o excesso de armas à disposição tem incentivado a violência, inclusive acobertando o aumento dos arsenais do crime organizado. Um largo passo atrás no armamentismo é bem-vindo e necessário.
No entanto, o pacote ainda não detalhado vai além do bom senso, quando incorpora à defesa da democracia a permissão de excessos de poder que têm tudo para configurar prenúncios autoritários. Nada diferente, aliás, do que ocorre em países em que a democracia relativa vigora a todo vapor, com o Judiciário refém do Executivo e a oposição proibida de emitir críticas, ou mesmo de participar de eleições – quando os opositores não estão presos, por representarem perigo ao ditador estabelecido em nome de uma democracia cercada por todos os lados pela hipocrisia da falta de liberdade.
O aumento de pena para até 40 anos de prisão para crimes contra a ordem democrática não é a essência da proposição, que ainda precisa ser melhor debatida, em toda sua extensão. Mesmo isso, no entanto, é controverso e questionado, no meio jurídico fora da influência do Planalto. Muito mais polêmica, para dizer o mínimo, é a possibilidade de juízes, individualmente, ordenarem medidas cautelares de busca e apreensão de bens, e bloqueio de contas bancárias, seja por iniciativa própria a partir de investigações em curso por crimes dessa natureza, seja por solicitação da União – isto é, do governo federal. Com isso, quer se retirar de cena um possível risco à democracia, através do excesso de poder, em nada democrático, disponível ao governante da hora e seus ministros. Apenas para efeito de análise, imagine-se tal opção de incursão autoritária ao alcance de governantes eleitos sob o viés antidemocrático.
Garantir a democracia pelo abuso de poder é exatamente o discurso de ditadores instalados sobre democracias relativas. O exercício dos poderes – no plural – requer mais equilíbrio no Brasil, tanto em relação às competências, quanto aos limites. Por outro lado, se reduzir a circulação de armas é fundamental para inibir a violência, não cabe a alegação da ameaça violenta para construir um Cavalo de Tróia, e impor a força autoritária restritiva de liberdades, contra a própria democracia. Para um governo que se elegeu por uma coalizão de partidos sob a defesa das instituições democráticas, não cai bem achar que o excesso é a saída para evitar autocratas no poder.

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