O pensamento que flui em cascata, no silêncio ou pela fala, em sussurros ou gritos, pode se organizar e ganhar outros sentidos através da leitura e da escrita. Um texto lido e apreendido com atenção abre janelas para a observação do mundo, em perspectivas diversas, descortinando outros pensamentos na sequência do que se lê. O ato da escrita, por sua vez, pode abrir portas de calabouços internos, servir de escoadouro para medos e desejos antigos, além de comunicar para si, de forma diferente, o que se pensa, fazendo aflorar à superfície do papel o que se esconde na profundidade da mente. Daí a importância dos primeiros passos no universo das palavras, desde cedo, se possível, ou quando a chance se apresentar. A partir de então, o caminho da leitura e da escrita não finda: toda leitura amplia a vista, toda escrita faz algo emergir de quem escreve.
Um projeto idealizado pela professora de Língua Portuguesa Márcia Cavalcante, no Recife, provocou estudantes da escola Matias de Albuquerque, em Casa Amarela, a escreverem diários baseados na vida e na obra da escritora Carolina Maria de Jesus. Os estudantes fazem parte da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da escola. Carolina Maria de Jesus é autora de “Quarto de despejo”, obra feita em forma de diário, onde relata o cotidiano na favela. A identificação com a leitura foi explorada para dar vazão à escrita, também como diários, pelos estudantes. “Muitos alunos se identificaram com a história de Carolina, até por uma questão identitária também, de se perceber numa realidade difícil como a dela, de todos os caminhos que ela percorreu para chegar onde chegou. Eles adentraram em toda a miséria descrita e refletiram sobre os momentos muito difíceis que eles também vivenciaram ao longo da sua trajetória de vida e escolar”, contou a professora, em matéria publicada pelo JC no domingo.
Esse tipo de abordagem não é novidade na educação, mas poderia ser mais disseminada, num país tão desigual como o Brasil. Alguns estudantes da EJA da Matias de Albuquerque tiveram sua primeira leitura de um livro com o projeto – o que é muito bom, pois puderam aproveitar melhor o horizonte que a literatura é capaz de proporcionar. Por outro lado, é triste constatar o quanto o livro segue distante de milhões de brasileiros, mesmo aqueles que tiveram acesso formal à educação de qualidade desde crianças, numa unidade da rede pública ou privada. A leitura do mundo é menor, estreitando a compreensão, alargando a dependência e reduzindo os potenciais de vida, sem o aprendizado e o hábito de ler.
Conseguir escrever o que vivencia, o que passou e os anseios e sonhos para o futuro, foi uma das superações descritas pelos estudantes. A escrevivência – termo criado por Conceição Evaristo – surge como força criadora e transformadora, no apoio a novas visões e atitudes de cada um, com repercussões coletivas. Parabéns à professora Márcia e aos estudantes da EJA. Que leiam e escrevam mais, por uma cidade mais digna, e um país mais justo.