EDUCAÇÃO

Escrita de si, leitura do mundo

Projeto de uma professora de língua portuguesa inspirado em Carolina Maria de Jesus proporciona experiência transformadora no Recife

Cadastrado por

JC

Publicado em 08/07/2024 às 0:00
Extrema direita na Europa - Thiago Lucas

O pensamento que flui em cascata, no silêncio ou pela fala, em sussurros ou gritos, pode se organizar e ganhar outros sentidos através da leitura e da escrita. Um texto lido e apreendido com atenção abre janelas para a observação do mundo, em perspectivas diversas, descortinando outros pensamentos na sequência do que se lê. O ato da escrita, por sua vez, pode abrir portas de calabouços internos, servir de escoadouro para medos e desejos antigos, além de comunicar para si, de forma diferente, o que se pensa, fazendo aflorar à superfície do papel o que se esconde na profundidade da mente. Daí a importância dos primeiros passos no universo das palavras, desde cedo, se possível, ou quando a chance se apresentar. A partir de então, o caminho da leitura e da escrita não finda: toda leitura amplia a vista, toda escrita faz algo emergir de quem escreve.
Um projeto idealizado pela professora de Língua Portuguesa Márcia Cavalcante, no Recife, provocou estudantes da escola Matias de Albuquerque, em Casa Amarela, a escreverem diários baseados na vida e na obra da escritora Carolina Maria de Jesus. Os estudantes fazem parte da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da escola. Carolina Maria de Jesus é autora de “Quarto de despejo”, obra feita em forma de diário, onde relata o cotidiano na favela. A identificação com a leitura foi explorada para dar vazão à escrita, também como diários, pelos estudantes. “Muitos alunos se identificaram com a história de Carolina, até por uma questão identitária também, de se perceber numa realidade difícil como a dela, de todos os caminhos que ela percorreu para chegar onde chegou. Eles adentraram em toda a miséria descrita e refletiram sobre os momentos muito difíceis que eles também vivenciaram ao longo da sua trajetória de vida e escolar”, contou a professora, em matéria publicada pelo JC no domingo.
Esse tipo de abordagem não é novidade na educação, mas poderia ser mais disseminada, num país tão desigual como o Brasil. Alguns estudantes da EJA da Matias de Albuquerque tiveram sua primeira leitura de um livro com o projeto – o que é muito bom, pois puderam aproveitar melhor o horizonte que a literatura é capaz de proporcionar. Por outro lado, é triste constatar o quanto o livro segue distante de milhões de brasileiros, mesmo aqueles que tiveram acesso formal à educação de qualidade desde crianças, numa unidade da rede pública ou privada. A leitura do mundo é menor, estreitando a compreensão, alargando a dependência e reduzindo os potenciais de vida, sem o aprendizado e o hábito de ler.
Conseguir escrever o que vivencia, o que passou e os anseios e sonhos para o futuro, foi uma das superações descritas pelos estudantes. A escrevivência – termo criado por Conceição Evaristo – surge como força criadora e transformadora, no apoio a novas visões e atitudes de cada um, com repercussões coletivas. Parabéns à professora Márcia e aos estudantes da EJA. Que leiam e escrevam mais, por uma cidade mais digna, e um país mais justo.

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