A recomendação básica de combate à pandemia do coronavírus – lavar e lavar as mãos, uma, duas, dez vezes por dia – funciona bem nos gabinetes e escritórios da gestão pública. Ou nos prédios e casas de classe média. Na periferia, ela ainda é utopia. É algo difícil de ser cumprido para muitos moradores de bairros e comunidades carentes da Região Metropolitana do Recife. Nas ruas sem calçamento, escadarias e vielas por onde uma única pessoa consegue passar por vez, a recomendação da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde Brasileiro é rebatida com ironia. “E como é que eu vou lavar tanto as mãos desses jeito se não tem água todo dia? E, quando tem, preciso gastar com prudência para não ficar sem no outro dia, já que não há certeza de que a água chegará? É imprevisível”, resume a situação a dona de casa Maria Aparecida da Silva, moradora do Alto Santa Terezinha, na Zona Norte da capital.
No Córrego da Areia, comunidade de Nova Descoberta, outro bairro da periferia da Zona Norte do Recife, a situação se repete. “Hoje temos água, mas amanhã podemos não ter. Não existe um racionamento oficial, mas tanto faz termos água na torneira por vários dias como faltar. Já ficamos, por exemplo, sem água por quatro, cinco dias seguidos. Por isso, o jeito é armazenar”, ensina a dona de casa Idalina dos Santos, enquanto mostra a minúscula cozinha da pequena residência abarrotada do líquido armazenado em todo tipo de depósito. Nos fundos da casa, uma caixa d´água com capacidade para 500 litros completa a reserva. Quando questionada se estava sendo possível lavar as mãos diversas vezes como têm recomendado o ministro e os secretários de saúde, por exemplo, a resposta deixa a dúvida no ar: “Temos sim, mas só quando é possível”.
São situações como as relatadas pelas duas donas de casa que preocupam e comprometem a eficiência do combate à propagação do coronavírus. Cinco horas depois de a reportagem conversar com os moradores, o governo de Pernambuco anunciava ações emergenciais no valor de R$ 12,5 milhões para ampliar o abastecimento de água no Estado e, principalmente, no Grande Recife. A garantia de abastecimento e a certeza de que haverá água nas torneiras são premissas para o enfrentamento da pandemia. Sem elas, a guerra contra o novo vírus será perdida na periferia, que ainda parece estar alheia à gravidade da situação.
CENÁRIO CAÓTICO
O alerta é feito pelo pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz/PE) André Monteiro Costa. “O abastecimento precisa ser ampliado e o rodízio do racionamento reduzido. Isso é urgente. O risco é muito grande. O momento é de, se for o caso, transferir o abastecimento de bairros mais nobres para os mais pobres. A política de rodízio para as comunidades mais vulneráveis tem que acabar. Elas têm que ter água todos os dias. E isso é uma decisão política. Se há problemas na rede, seja pelas perdas ou ausência de conexão, é necessário fazer o fornecimento de água com carros-pipas”, afirmou.
Para reforçar a urgência das ações, o pesquisador adverte que os números relativos ao saneamento básico e abastecimento de água do Recife são muito ruins. “O percentual de abastecimento de água no Recife é de 86%, o que é muito baixo. Ou seja, 14% dos domicílios da cidade não têm canalização de água. O esgotamento sanitário só alcança 42% da cidade e o desperdício de água tratada é assustador: 61% do que é produzido se perde no caminho. De cada 100 litros de água tratada, só 39% chegam nas casas”, adverte. Os dados são do ranking do saneamento básico desenvolvido desde 2007 pelo Instituto Trata Brasil. Nele, a capital pernambucana ocupa o 79º lugar entre as cem cidades com mais de 100 mil habitantes.