O cenário é quase pós-apocalíptico. Com os esforços voltados para conter a pandemia do novo coronavírus (covid-19), o principal cartão-postal da capital amarga o abandono pelo poder público. Não é preciso andar os cerca de oito quilômetros da orla de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, para perceber as mazelas. Buracos, bancos quebrados, vegetação alta e pichações podem ser vistas em vários trechos da praia. As barracas de coco, que seguem fechadas, também foram afetadas, se não pelas chuvas, por atos de vandalismo.
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Se antes os problemas não eram percebidos pela população, já que as praias estavam fechadas desde abril para evitar a disseminação da doença, agora, com a retomada das atividades no Estado, as mazelas não fogem aos olhos de quem passa. O administrador aposentado Bartolomeu Nascimento, de 77 anos, caminha na orla há mais de 10 anos e conta que os problemas são antigos, mas que a situação piorou com a pandemia. “Está tudo abandonado. A prefeitura esqueceu esse local, que é um bairro tão nobre e importante para a cidade”, lamentou.
O cozinheiro Eraldo Martins, 55, argumentou que os meses de distanciamento social e de proibição de circulação de pessoas poderiam ter sido aproveitados para requalificar o local. “Se essa pandemia nos mostrou algo, é que os governos têm dinheiro, o que falta é vontade de fazer as coisas que precisam ser feitas. As praias fechadas seriam uma ótima oportunidade para as melhorias”, defendeu.
Na última segunda-feira, a contadora Andrea Camargo, 48, saiu às ruas pela primeira vez desde a liberação da orla para exercícios, no último dia 20. Para ela, o susto foi grande. “Está tudo vandalizado. O que chama atenção é que os policiais estavam aqui o tempo todo para fiscalizar quem vinha para a praia e mesmo assim essas coisas aconteceram”, pontuou.
As estruturas mais atingidas pelo vandalismo foram as barracas de coco da orla. Algumas chegaram a ser inteiramente destruídas, como a de número 60, localizada no limite entre Recife e Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana. Dos 72 anos de vida, Tomé Ferreira trabalhou 52 na orla de Boa Viagem e nunca viu situação semelhante. “Meu prejuízo maior, graças a Deus, foi somente com mercadoria. Perdi cerca de R$ 15 mil. Mas tem barraqueiros que estão em situação pior, porque os quiosques foram arrombados e levaram tudo”, conta. Tomé, que é conhecido como Zezinho do Coco, tem se mantido com as economias que juntou para investir no negócio, mas sente os impactos de não poder trabalhar. “Estou sendo acompanhado por psicólogo, neurologista e tudo”, desabafa.
Presidente da Associação dos Barraqueiros de Coco do Recife (ABCR), Josiane Miranda conta que a Prefeitura do Recife chegou a ajudar os trabalhadores com doações de cestas básicas, mas afirma que parte dos barraqueiros está preocupada, porque não tem condições de voltar às atividades, principalmente os donos dos cerca de 15 quiosques que foram vandalizados e precisam de reformas estruturais para voltar a funcionar. “A gente tinha um projeto, em parceria com uma empresa, mas ficou tudo parado com a pandemia”, conta. Para ela, a orla nesta situação afasta o turismo. “Boa Viagem está pedindo socorro, clemência mesmo”, lamenta.
A preocupação é compartilhada pelo setor hoteleiro na região. Segundo o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis em Pernambuco (Abih), Eduardo Cavalcanti, a entidade já havia pleiteado a requalificação da orla em outras ocasiões. “Se trata do principal cartão-postal do Recife. Antes mesmo da pandemia estávamos em contato com a prefeitura, que prometeu que os serviços seriam feitos. O lógico seria aproveitar o período para fazer isso. É questão de prioridade mesmo. Está abandonado”, afirmou. Segundo ele, os diálogos têm se intensificado diante da nova realidade da orla, após a pandemia.
Presidente da Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), Marília Dantas afirmou que as intervenções na orla de Boa Viagem estão entre as prioridades neste período de retomada das atividades. “Já havia um planejamento para a avenida, com obras de drenagem, manutenção dos bancos, do calçadão. Com a pandemia, os serviços foram suspensos, já que havia uma determinação do não uso do calçadão e não queríamos continuar os serviços até para não estimular que as pessoas saíssem de casa", justificou. Segundo ela, com o plano de retomada das atividades no Estado, a prefeitura já deu início aos trabalhos no local, com a recuperação da drenagem e dos pré-moldados, que dividem a ciclovia da pista de carros. As intervenções ainda incluem a recuperação do piso do calçadão e devem ser finalizadas até 15 de agosto, no trecho que vai do limite com Jaboatão e a pracinha de Boa Viagem.
Segundo ela, no último sábado também foi publicada a licitação para a requalificação dos bancos da avenida. O processo licitatório pode levar 120 dias e a obra em si deve levar mais 120 dias para a conclusão. Marília Dantas afirmou que, com a chegada da pandemia a Pernambuco e o epicentro da doença no Recife, parte dos recursos que estavam previstos para a Emlurb acabaram sendo colocados para a Secretaria de Saúde do município, mas defendeu que obras prioritárias estão sendo retomadas, como as da Avenida Conde da Boa Vista e da orla de Boa Viagem. As intervenções nas pontes também continuaram. As pontes do Derby e Torre estão finalizadas e a Motocolombó, na Zona Oeste, deve ser entregue em agosto.
Sobre as ocorrências de vandalismo, a Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) se manifestou através de nota. O comunicado diz que "desde o início da quarentena, em março, os números de Crimes Violentos Contra o Patrimônio (CVP) e Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) na orla de Boa Viagem caíram drasticamente." De março a junho, o o Centro Integrado de Operações de Defesa Social (CIODS) registrou dois chamados para ocorrências. No primeiro, no dia 26 de maio, os policiais prenderam um homem após um furto a um quiosque. Já no último dia 9 de junho, a PM teria impedido um assalto, apreendendo dois adolescentes e prendendo um terceiro suspeito.
"O policiamento ostensivo no local é realizado pelo 19° BPM, que independentemente do esforço no combate à epidemia do Covid-19 mantém inalterado o esquema de segurança no bairro, incluindo a Orla de Boa Viagem. A unidade lança diariamente Guarnições Táticas e equipes em motocicletas, além de contar com o Grupo de Apoio Tático Itinerante (GATI) e apoio das unidades especializadas como os Batalhões de Choque e de Trânsito, a Companhia Independente de Policiamento com Motocicleta e o Regimento de Polícia Montada", diz a nota.