A criança de 10 anos que foi submetida, na tarde desse domingo (16), a um aborto no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), no Recife, continua internada na unidade. Grávida após ter sido estuprada durante quatro anos pelo próprio tio na cidade de São Mateus, no Espírito Santo, a menina recebeu a autorização da justiça capixaba na sexta-feira (14) para realizar o procedimento, que deveria ter sido mantido sob sigilo. Em entrevista à TV Jornal, nesta segunda-feira (18), a vice-presidente da Ordem Dos Advogados do Brasil em Pernambuco, Ingrid Zanella, afirmou que “todo o procedimento foi legal”.
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Como argumento, Zanella aponta que, no Brasil, o aborto é permitido em apenas duas situações: quando há risco de vida para a gestante e quando a gestação é fruto de um ato ilícito, ou seja, de um estupro, e há manifesta vontade da gestante em interromper a gravidez. A permissão está contida no Decreto-Lei 3.688, que diz que “Não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro, e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Em 2012, ainda, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu que a operação fosse feita também quando o feto sofre de anencefalia.
Para a especialista, o caso da menina atende aos dois requisitos para a legalidade. “Neste caso, percebemos que há a incidência das duas hipóteses legais: uma criança de 10 anos não tem estrutura física, segundo médicos, para manter de forma segura a gestação, existia risco à sua vida, bem como ela tinha manifestado sua vontade em interromper. [...] Todo o procedimento foi legal, não só amparado nas duas hipóteses permissivas do nosso ordenamento jurídico, bem como determinado por uma ordem judicial de um juiz plenamente competente para o caso”, disse Zanella.
Antes mesmo da operação começar, uma multidão se aglomerou em frente ao Cisam, localizado no bairro da Encruzilhada, Zona Norte da capital pernambucana. De um lado, defensores do direito de a menina realizar o aborto pela pouca idade e pela violência sofrida. Do outro, um grupo liderado por vereadores e deputados - muitos deles ligados à igreja evangélica, outros à católica -, totalmente contrários ao procedimento. Horas depois, grupos feministas também foram ao local apoiar que a cirurgia fosse realizada.
A vice-presidente da OAB afirma que o sigilo do procedimento deveria ter sido mantido pelo judiciário e por toda a sociedade civil. Ela também comentou as manifestações que ocorreram. “Quando falamos de liberdade de religião, de expressão e manifestação, todos estes são direitos garantidos em nossa Constituição Federal. Mas estes não podem ser realizados de forma a constranger, a violentar, a agredir com palavras, gestos, de forma psicológica, uma criança, inclusive protegida de forma especial pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não podendo ser submetida a qualquer tipo de violência, constrangimento que afrontem sua dignidade”, defendeu.
Zanella ainda pontuou que, agora, é dever do Estado fornecer apoio médico para que a menina reinicie sua vida. “Agora, ela vai ser acompanhada por uma equipe multidisciplinar para que tenha acompanhamento médico, psicológico, terapêutico, e tenha uma nova etapa em sua vida com todo o amparo público de profissionais qualificados, junto das pessoas que de fato a amam e que podem contribuir para que ela possa recomeçar sua vida de forma feliz, segura, inclusive no seu ambiente familiar, como estabelece o ECA e a nossa Constituição Federal”, disse.
A autorização para o aborto legal da garota de dez anos foi dada pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade de São Mateus, Antonio Moreira Fernandes. No despacho, o magistrado determina que a criança seja submetida ao procedimento de melhor viabilidade e o mais rápido possível para preservar a vida dela. É usada a expressão "imediata".
O caso foi descoberto quando a menina deu entrada no dia 8 de agosto no Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, com sinais de gravidez. A garota estava se sentindo mal e a equipe médica desconfiou da barriga "crescida" da menina. Ao realizar exames, os enfermeiros descobriram que ela estava grávida de três meses. Em conversa com médicos e com a tia, a criança confidenciou que o tio a estuprava desde os seis anos e que nunca contou aos familiares porque era ameaçada. O homem fugiu depois que a gravidez foi descoberta.