A voz da antropóloga Debora Diniz em favor da descriminalização do aborto é histórica e incansável. Ameaçada de morte, ela precisou deixar o Brasil para continuar sendo ouvida. Ao analisar o sofrimento imposto a uma criança de 10 anos na sua saga pelo direito de abortar, a pesquisadora da Universidade de Brasília fala sobre cenas de "horrorismo", trata da escalada do "redemoinho de ódio" no País, mas também enxerga esperança e resistência. "Nós não existimos sem esperança. Porque é ela que nos dá o senso do futuro."
JORNAL DO COMMECIO - No Brasil, centenas de mulheres morrem todo ano vítimas de abortos clandestinos. Por que esses números não incomodam?
DEBORA DINIZ - A morte de mulheres por aborto é a ponta de uma tragédia que é cotidiana para muitas mulheres que atravessam a fronteira da clandestinidade e vão à ilegalidade para realização do aborto. Essas são as mulheres comuns brasileiras. São as mesmas mulheres que, nesse momento, morrem em outra faixa etária da pandemia da covid. São histórias anônimas. E a história dessa menininha de 10 anos, que durante anos foi violentada, é de uma criança negra, de família pobre, representa várias camadas de vulnerabilização da nossa vida comum. E ela só é nomeada publicamente porque há uma violação do seu direito. Ela passa a existir quando há o escândalo do fanatismo contra o aborto.
>> A dor de uma menina é a de muitas: as barreiras do aborto legal no Brasil
>> Médicos acessaram quarto de menina vítima de estupro para questionar decisão sobre aborto
>> "Não é com ódio que se resolve uma gravidez indesejada", diz médico Olímpio Moraes
>> Uma rede de carinho em torno de menina de 10 anos, após estupro e aborto
JC - É cruel a imagem de uma menina de 10 anos grávida. Mas a realidade de abuso sexual contra crianças e jovens é cotidiana. O que faz com que essa tragédia permaneça silenciosa e até naturalizada?
DEBORA - Uma criança grávida de 10 anos eu chamaria de uma imagem de horror. Há uma filósofa italiana (Adriana Cavarero) que diz haver umas cenas que são de horrorismo. Essa é uma cena de horrorismo. O abuso de meninas é parte de um regime patriarcal da vida. E essa tragédia é naturalizada porque a violência doméstica e o abuso sexual de crianças é uma extensão desse poder. O que a antropóloga Rita Segato chama de uma rapinagem. É um poder de rapina, ele é espoliador do corpo das mulheres e meninas.
JC - Que lições podem ser tiradas desse caso que chocou o País?
DEBORA - Eu queria ponderar que eu estou fazendo uma análise do instante, mas eu não posso dizer que vai ser assim, é uma tentativa de interpretação do instante sobre o futuro. Mas eu percebo este momento com base em duas evidências. O vídeo das minhas participações nas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal chegou a quase dois milhões de visualizações e pessoas que jamais se pronunciaram sobre o tema do aborto passaram a se pronunciar. Essas duas evidências me fazem ver que houve um ponto de virada. Diante desse horrorismo, pessoas passaram a se perguntar: o que está acontecendo aqui, com esse redemoinho do ódio se movimentando contra as mulheres e meninas em situação de aborto? Durante muitos anos nós tivemos muitas dificuldades acadêmicas, com pesquisadores pedindo que as pessoas fizessem a pergunta razoável sobre o aborto e elas não conseguiam fazer. Por que quase dois milhões de pessoas pararam para assistir ao momento em que eu falava de ciência no Supremo? Porque elas se permitiram parar nos seus afetos, nessa convocação ao fanatismo e perguntar: o que está acontecendo aqui? Sensibilizadas pelo horrorismo da cena, foram fazer a pergunta: Por que não descriminalizar o aborto?
JC - Há 11 anos, o médico Olímpio Moraes fez um aborto de uma criança de 9 anos e foi excomungado pela Igreja Católica. Agora ele foi chamado de assassino e se assustou com o ódio expresso por extremistas religiosos. Há como falar em avanços ou a intolerância prevaleceu?
DEBORA - Eu diria que nesses 11 anos nós estamos piores no contágio da intolerância que movimenta o ódio. O que nós tínhamos no caso da menina de Alagoinha, quando o doutor Olímpio foi excomungado, eram expressões de intolerância, de dissenso e ameaças fragmentadas. Não só com as redes sociais, mas com a emergência do poder do bolsonarismo, esse redemoinho do ódio conecta e contagia pessoas muito diferentes na intolerância. Eles ainda são minoria, mas aquela cena na porta do Cisam, com as pessoas tentando invadir o hospital, deve ser inesquecível para o debate brasileiro. Eu me pergunto o que elas estavam tentando fazer ali? Agredir a menina? Sequestrar a menina? Agredir a equipe médica? Elas operavam pelo corpo, não pela razão, pela palavra. Então, sim. Algo está muito pior.
JC - Em um artigo sobre o caso, você escreveu que é hora de ir bater à porta do STF para lembrar aos 11 ministros que essa tragédia poderia ter sido evitada se a corte tivesse coragem de descriminalizar o aborto no País. Há chances reais de esse tema voltar à pauta do Supremo?
DEBORA - Aqui há dois níveis da sua pergunta. Ele vai voltar. Ele está há dois anos e meio na pauta. Uma fase intermediária de preparação para o julgamento já aconteceu com as audiências públicas. O Supremo tem dois catalizadores neste momento para o julgamento dessa ação. Primeiro, o País é o epicentro do mundo em morte de mulheres durante a gravidez, o parto, o puerpério conectados à covid. Elas estão morrendo por falta de assistência e porque o governo não colocou na centralidade das políticas públicas a saúde reprodutiva em resposta à pandemia. Segundo, é a história concreta dessa menininha de 10 anos. O que a criminalização do aborto faz? Ela faz com que barreiras inexistentes surjam, como essa equipe médica do Estado do Espírito Santo dizer que não tem capacidade técnica de atender essa criança.
JC - No contexto mundial, como tem sido a luta pela descriminalizacão do aborto? O Brasil corre o risco de, a exemplo do que aconteceu com a escravidão, ser um dos últimos países a enfrentar esse tema?
DEBORA - A América Latina e o Caribe são laboratórios do autoritarismo no mundo. Um autoritarismo de cunho diferente do passado, com raízes militares, mas também com um coração pulsante que é a questão de gênero ligada às raízes patriarcais de poder. Não é uma coincidência que Bolsonaro seja um dos primeiros laboratórios de uma geopolítica regional sobre o avanço desse autoritarismo, com uma matriz de perseguição às mulheres. Nós estamos na região que mais criminaliza o aborto e também onde as mulheres mais fazem aborto no mundo. Por um lado, há o risco de a corte compreender a gravidade do momento e tomar uma decisão, e eu assim espero. Mas há também a chance de um enraizamento cada vez maior dessas forças conservadoras, autoritárias e fanáticas. Eu gosto de chamá-las muito mais de fanáticas do que de conservadoras. É um fanatismo autoritário que está em curso no País. O conceito de fanatismo é do (escritor) Amos Oz. O fanático é alguém que não ouve. Aquelas pessoas ao redor do Cisam eram fanáticas, enquanto as mulheres estavam ali num jogral, numa arte que ao mesmo tempo dialoga com o La Tesis (coletivo chileno de mulheres) e é também expressão muito forte da cultura popular pernambucana. Era um jogral, elas falavam e repetiam, num ato absurdamente pacífico de falar com fanáticos.
JC - A educação é arma essencial para enfrentar o abuso sexual. Mas, assim como outros temas, esse também foi politizado. Como fazer para que o País entenda a importância de levar esse problema para as escolas?
DEBORA - Eu não diria politizado, eu diria ideologizado. Ele foi objeto de missionarismo por parte da ministra Damares (Alves). Se nós tivéssemos educação nas escolas, com professores capacitados, eles estariam falando nisso em sala de aula. Essa menininha poderia ter ouvido em sala de aula que aquilo que ela sofria tem nome de abuso, ela não precisava ter medo de morrer, ela poderia ter outros canais de salvação que não fosse o momento em que o corpo matura a gravidez e é descoberta por um acaso, como um escândalo. Ela poderia ter sido protegida. Não falar de educação sexual nas escolas é perder um dos equipamentos fundamentais quando a casa é um espaço abusador.
JC - No caso da criança, ao mesmo tempo em que houve intolerância, fez-se resistência. Teve uma atuação rápida dos movimentos de mulheres e da rede de saúde pública de Pernambuco, com o apoio expressivo da sociedade. Houve uma resposta. É possível ser otimista, apesar de tudo?
DÉBORA - Eu não sou otimista. Otimismo é um sentimento baseado em afetos, não refletidos sobre dinâmicas do real. Eu tento, no máximo possível, operar como uma pesquisadora que sou, uma cientista. E é exatamente com os fragmentos de capacidade do real que eu consigo ter esperança. Porque esperança é um afeto, mas é um diagnóstico do presente para o futuro. Então, essas peças de que falamos, do jogral das mulheres, da rede que foi posta em ação, de uma construção de uma solidariedade instantânea, sem fronteiras, para além do feminismo, é onde eu deposito esperança. Nós não existimos sem esperança. Porque é ela que nos dá o senso do futuro.