Na última quinta-feira (5), o jurista gaúcho Lenio Streck publicou um artigo que repercutiu no meio jurídico sobre o caso Mariana Ferrer. No texto, ele defende a anulação do julgamento que inocentou o empresário acusado de estupro, com o argumento de que não é possível analisar a decisão judicial, ignorando a humilhação sofrida pela jovem durante a audiência virtual. "O tribunal deveria anular essa decisão para que se fizesse outra sentença. No mínimo."
JORNAL DO COMMERCIO - O que esse caso revela sobre o funcionamento do Sistema Judiciário brasileiro?
LENIO STRECK - Ele é simbólico, porque ele diz que o rei está nu. Essas imagens todas apenas mostram qual é o sistema que nós construímos. Um sistema que vem das origens da sociedade patriarcal e patrimonialista. Veja que a moça era vítima e foi tratada como ré. Nem o seu advogado pulou para defendê-la. E o promotor, que é defensor da sociedade, olhou para aquilo tudo como se estivesse ali uma espécie de acusada. Isso é fruto de muitas décadas de ensino jurídico malfeito, de autoritarismo, da máxima "Você sabe com quem está falando?" A estrutura do Judiciário reproduz a história do Brasil.
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JC - O que, ao seu ver, é o mais grave desse caso?
LENIO - Esse caso me preocupou não pelo mérito, não quero me meter no processo dos outros. Minha preocupação é que essa sentença não poderia ser dada pelas mesmas pessoas que participaram daquelas cenas em que a moça ficou acuada. Na primeira manifestação vexatória do advogado, eles já deviam parar tudo. Por isso que eles se tornaram, na minha concepção, suspeitos.
JC - Em nenhum momento o advogado foi detido nas suas falas?
LENIO - Eu vi o vídeo inteiro da oitiva da moça e o conjunto da obra dos 30 e poucos minutos do depoimento dela confirma o que estava ali, naqueles dois, três minutos divulgados. Veja, o juiz e o promotor, nenhum deles cometeu nenhum crime. Não se trata disso. O que nós estamos falando, a minha preocupação é aquilo que é uma sala de audiência e quanto isso pode significar no chamamento à atenção das centenas e milhares de audiências cotidianas. Não precisa ser sexual, a questão. O que eu quero dizer é sobre essa relação vertical de poder que o Brasil precisa repensar, no que diz respeito ao sistema judicial.
JC - Em seu artigo, escrito para o site Consultor Jurídico, o senhor defende a nulidade da sentença.
LENIO - Eu creio que há bons argumentos para isso. Porque o juiz não conduziu a audiência como devia, ou seja, ele é o presidente dos trabalhos. O promotor, que é o defensor da sociedade e fiscal da lei, não chamou a atenção do juiz e do advogado naquilo que seria necessário. O fato de que, em alguns momentos, o juiz e o promotor tenham falado não significa que eles tenham tido sucesso em conseguir conter. Ao assim não fazer, eles acabaram criando essa nulidade. Mas isso aparece também em outros lugares. Toda sentença é composta de relatório, fundamento e decisão. E no relatório da sentença não está escrito nada do que aconteceu na audiência.
JC - Daqueles termos, daquela forma?
LENIO - De nada. Só tem uma frase. Veja você lá e verifique na sentença, no relatório da sentença o juiz simplesmente diz: a vítima foi ouvida. É uma falha grave. Nas alegações finais do promotor, nada. Como na sentença e nas declarações finais, nada disso está contado, é como se não tivesse existido. É justamente isso que faz com que essa sentença seja nula. Então, o tribunal deveria anular essa decisão para que se fizesse outra sentença. No mínimo.
JC - Como enfrentar essa verticalização do Sistema de Justiça?
LENIO - Você tem que entender que o Judiciário reproduz a sociedade brasileira, que é uma sociedade masculina. Por exemplo: o comentário misógino que o advogado fez, a misoginia provavelmente não teria ocorrido se fosse um homem que tivesse ali. Acontece que há uma normalização das coisas. Quando ocorre um casos desses, acaba tendo esse lado bom de chamar a atenção para aquilo que se vê no cotidiano. O cotidiano das práticas no Brasil da autoridade é o de uma sociedade patrimonialista, uma sociedade que nomeia as partes mais fracas: mulheres, crianças, negros, índios. Eu não sou especialista em gênero e essas outras discussões não fazem parte das minhas pesquisas. Mas eu sou um observador e vejo que, agora, perigosamente no Brasil, parece que está voltando a possibilidade do júri decidir pela tese da legítima defesa da honra. Nós estamos retrocedendo nesse sentido.
JC - O senhor acredita que os agentes que participaram da audiência sofrerão algum tipo de punição pelas posturas adotadas?
LENIO - Vai depender do modo como isso for discutido e tratado na própria sociedade. Se isso for tratado como algo simbólico, do tipo: nós temos que repensar as relações de poder dentro das instituições, a gente vai avançar. Mas se a gente pensar ou discutir empregando figuras como: 'ah, o vídeo todo não é isso'... 'ah, mas o juiz não tinha provas'... Se a gente discutir isso no varejo, isso vai sumir. Se a gente tiver a capacidade de catapultar isso para o atacado, a gente vai ter mais sucesso. A gente pode se perder na minúcia e aí isso vai ficar canalizado na fragmentação cotidiana. Se a gente pegar e discutir no plano do simbólico, daquilo que representa a estrutura, como funciona o poder na sociedade, teremos mais chance. Lembre-se: o Brasil é um País que ainda tem elevador social e elevador de serviço.
JC - Mas o senhor acredita na responsabilização desses agentes, até para dar uma resposta à sociedade?
LENIO - Não sei, é muito difícil dizer. Eu acho que, provavelmente, essa discussão toda vai se perder no varejo. Eu não sou muito otimista não, em relação a termos algum avanço. Sobre a punição dos envolvidos, eu não apostaria muito nisso não. Nem acho isso o mais importante. O mais importante é nós nos darmos conta do que está por trás de tudo isso e do simbólico que isso representa. Pra mim, é muito mais importante uma questão que o autor Cornelius Castoriadis traz em um livro chamado A Instituição Imaginária da Sociedade. Lá ele diz que o gesto do carrasco é real, por excelência, e simbólico, na sua essência. Então, o simbólico é mais forte que o próprio real. As questões concretas são menos importantes do que se representa simbolicamente e do que se pode tirar de proveito disso tudo.