URBANISMO

Esvaziamento do Centro do Recife deixa área histórica à beira do abandono

Onze bairros do Centro do Recife abrigam apenas 5,08% do total da população da capital pernambucana. As consequências do esvaziamento da região são insegurança e falta de manutenção

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Katarina Moraes

Publicado em 11/04/2021 às 8:00 | Atualizado em 13/01/2023 às 11:17
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O Centro do Recife não sustenta esse título por mera localização geográfica, mas porque de fato foi onde a cidade nasceu. Ao redor do principal portão de escoamento de mercadorias e de desembarque de imigrantes europeus do Brasil, a civilização da capital pernambucana foi sendo formada e reorganizada ao longo dos séculos. Hoje, a região que antes pulsava vida e comércio, teme o esquecimento e o esvaziamento de suas ruas. Pela manhã, as lojas ainda atraem milhares de pessoas. À noite, o silêncio toma conta. Mas, em todas as horas do dia, impera a sensação de abandono nos 11 bairros que melhor contam a história da Veneza brasileira.

O cenário é de total descuido com o patrimônio público, apenas um entre a série de problemas que o Centro do Recife coleciona. Em diversas praças, bancos quebrados, pichações e pedras arrancadas das clássicas calçadas portuguesas formam a triste paisagem, além do lixo e do mato que tomam conta do chão. Um dos equipamentos mais danificados é a Praça Dezessete, que homenageia no nome a Revolução Pernambucana de 1817. Sua estátua localizada no espaço próximo ao Cais virou depósito de objetos de pessoas sem teto, apagando a memória da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922, que teve Recife como uma das paradas.

Sentado no banco, o aposentado Antônio Fernando Silva, de 63 anos, revelou a vontade de ver “uma cidade mais limpa e com mais segurança”. “Está tudo mal cuidado, mal tem lugar para sentar. Nasci em Palmares, mas moro no Recife desde os 14 anos, e antigamente era melhor. A praça era bem cuidada, vínhamos para o Centro nos divertir, admirar, tinha muita coisa bonita para ver. Agora, está tudo acabado. Os prédios estão abandonados, com pinturas velhas”, afirmou.

Mesmo com dezenas de prédios desocupados, as calçadas dos bairros históricos se tornaram o alento de várias das 1.400 pessoas que vivem em situação de rua no Recife, segundo dados de 2019 da Prefeitura da cidade. Com levantamento desatualizado, o número total de recifenses sem teto nos dias de hoje deve ser maior, segundo a própria gestão, já que a taxa de desemprego em Pernambuco fechou 2020 em 16,8%, o maior índice desde 2017, devido à pandemia da covid-19. Alguns dos pontos mais críticos são as ruas do Hospício e do Príncipe, no bairro da Boa Vista, e na Rua do Imperador, em Santo Antônio, que está repleta de lonas de plástico montadas como barracas, em uma tentativa ganhar proteção contra a chuva e o mínimo de privacidade.

"É onde eles ocupam porque o espaço está vazio, sem uma utilidade. No Centro, eles encontram uma marquise, uma galeria. É naquele espaço que está abandonado que eles vão achar um lugar de resguardo da situação em que eles estão. Os bairros [de outras regiões] estão habitados, então teriam uma reação mais forte a eles, caso fossem para lá. É preciso cuidar dessas pessoas e também do espaço público", disse o arquiteto e urbanista Roberto Salomão, conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU-PE).

Para a maior parte da população, o Centro agora resume-se a um lugar de compras. Mesmo assim, o comércio da região também sofreu o impacto de uma área desvalorizada para o mercado imobiliário. “Existe um problema sério de zeladoria no Centro, ele precisa de ações de limpeza e de segurança, principalmente. Também há uma carência de atenção do poder público, que precisa interferir no local. Ele precisa ser ocupado com moradia. É um grande lugar de comércio que tem um patrimônio histórico e cultural, e é preciso juntar todas essas coisas”, defende Frederico Leal, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) do Recife.

O comerciante Manoel Sebastião da Silva, de 62 anos, que tem uma venda na Avenida Guararapes, foi um dos que sentiram no bolso a nova configuração do Centro, e denuncia que a sensação de insegurança no local de trabalho é constante. “Tinha muito movimento, hoje não tem mais. As pessoas andam com medo e insegurança, não nos sentimos protegidos. Todos os dias, fico na expectativa do assalto. Há poucos anos, eu vendia entre 150 e 200 cocos por dia, muitos para turistas. Atualmente, vendo em média 30. Não vejo os vejo mais. Me sentia feliz, porque a cidade estava movimentada. E, com tudo isso, quem perde somos nós”, desabafa.

Antes, eu me sentia feliz, porque a cidade estava movimentada. E, com tudo isso, quem perde somos nós
Comerciante Manoel Sebastião da Silva, 62 anos

ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
Camelódromo na Avenida Dantas Barreto no bairro de São José. - ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM

A palavra “medo” é, inclusive, a que mais aparece no discurso dos frequentadores dos bairros centrais do Recife, como no do flanelinha José Francisco Nascimento, 59. “Trabalho aqui há 30 anos, e, ultimamente, essa região tem piorado muito. Agora, na pandemia, o movimento caiu e nós estamos passando dificuldades. Só tem ladrão na cidade. Não tem mais nada de bonito, está tudo sujo, tem muito tráfico de drogas. Antes, era mais organizado”, conta. No entanto, a Secretaria de Defesa Social (SDS), expõe que o número de Crimes Violentos contra o Patrimônio (CVP) teve uma redução de 16% de janeiro a fevereiro deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado, passando de 565 para 475 CVPs.

Em resposta, a Polícia Militar de Pernambuco informou que o policiamento ostensivo no Centro do Recife é realizado pelo 16º Batalhão. “Diariamente, a unidade lança Guarnições Táticas, ciclopatrulhas e equipes do Grupo de Apoio Tático Itinerante (GATI). Na área, são executadas a Operação Cerne, que visa coibir roubos e furtos no Centro, e a Operação Telum, que tem como objetivo maior retirar de circulação as armas consideradas brancas, usadas por criminosos nos pontos estatisticamente comprovados como de maior incidência de assaltos na área”, afirmou.

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Nem sempre foi assim

Relatos de quem viveu no século XX no Recife e de especialistas dão conta de que, ao longo das últimas décadas, o antigo coração da cidade foi aos poucos sendo esvaziado de cultura, opções de lazer, comércio e, consequentemente, de moradores. "O grande problema hoje no bairro do Recife foi a perda da moradia no Centro. A partir do momento em que as pessoas deixaram de morar no Centro, ele começou a ter um funcionamento sazonal, só tendo atividades em um determinado período do dia. Isso começou a impactar a própria dinâmica dele, e muitos edifícios começaram a se esvaziar", explicou o arquiteto e urbanista Roberto Salomão.

A saída das pessoas da região também foi o motivo, para o professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Biu Vicente, do abandono do poder público no local. “Como não tem ninguém vivendo naquele lugar, ele vai se deteriorando, e a própria prefeitura foi o abandonando. As pessoas moravam nos prédios comerciais da Conde da Boa Vista, não eram só lojas, como são hoje. Lá não se produz mais os impostos como antigamente, e, assim, os prefeitos começam a não cuidar da rua, a não colocar policiamento. Quando vou lá, eu choro. É uma dor enorme”, desabafa o pesquisador.

Quando vou lá [no Centro], eu choro. É uma dor enorme
Professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Biu Vicente

Hoje, a área composta por 11 bairros conta com um pouco mais de 78 mil habitantes, segundo dados da Prefeitura do Recife, o que representa 5,08% do total da população da capital pernambucana, que tem 1,5 milhão de pessoas. Mas nem sempre foi assim. Até os anos 70, aproximadamente, tudo girava ao redor do Centro. “A partir de 1964, parece ter havido uma série de medidas que o esvaziaram, como a construção da Avenida Dantas Barreto. Também teve a questão das enchentes de 1975, que levou muitas pessoas a irem morar em Boa Viagem, na Zona Sul. Com isso, o comércio também vai para lá, então ninguém mais precisa ir para o Centro da cidade”, conta o historiador.

Eram nos bairros do Centro onde estavam concentradas as grandes lojas da cidade, como a saudosa Viana Leal, a Mesbla, ambas na Rua da Palma, e a Lobrás, na Rua Nova. Lá também era o endereço de importantes espaços de lazer, com destaque para os cinemas de rua Moderno, na Praça Joaquim Nabuco, Veneza, na Rua do Hospício, e São Luiz, na Rua da Aurora, sendo este último o único sobrevivente que ainda opera em 2021. Habitação, cultura e comércio coexistiam no Centro, que também foi palco de grandes revoluções e movimentos políticos.

“Na Rua do Imperador, na cadeia pública, foi onde Frei Caneca ficou preso. Onde é hoje a Praça da República, foram mortos os revolucionários de 1817. Do outro lado, no Forte das Cinco Pontas, aconteceu a execução de Frei Caneca. Na revolução de 1930, houve troca de tiros na região onde hoje é a Casa da Cultura. Escaramuças aconteceram em direção à Rua Velha e à Ponte Velha. Foi na Praça da Independência que o estudante de direito Demócrito de Souza Filho foi assassinado em 1945, fato que foi um dos estopins do movimento que pôs fim à Ditadura do Estado Novo”, disse o historiador.

Segundo o arquiteto Salomão, a tendência do abandono não acontece só no Recife, mas também em centros de outras capitais do país. "Acontece com a maioria, quase a totalidade, dos centros urbanos de maneira geral, como com o do Rio de Janeiro e com o de São Paulo. Alguns sofrem mais, outros menos. Os que guardam a relação da vitalidade urbana e com as funções urbanas sofrem menos", disse.

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Ações de revitalização

A revitalização do Centro do Recife foi um compromisso de campanha do então candidato a prefeito João Campos (PSB), que prometeu a criação de um escritório de gestão específico para o Centro da cidade, com ações para limpeza urbana, manutenção e política de atração de investimentos. Segundo a Prefeitura do Recife, para isso, vêm acontecendo reuniões periódicas com organizações como a CDL Recife, o Sindicato dos Lojistas do Comercio de Bens e Serviços do Recife (Sindilojas) e com o Porto Digital para formular o melhor projeto para a área, que ainda não tem previsão para sair do papel.

"Estamos em conversas preliminares com os principais atores e tentando montar um projeto que seja robusto. A ideia é criar o escritório e fazer com que ele avance, e estamos vendo de que maneira podemos integrar o que precisa ser feito na região do Centro. É uma questão de repensar o comércio e a dinâmica econômica de toda aquela área. O grande objetivo é retomar a moradia de alguma maneira no Centro, porque dá vida à área, inclusive à noite. Uma série de empreendimentos são inviabilizados quando não tem moradores que se apropriam do espaço", afirmou o secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Recife, Rafael Dubeux.

Por nota, a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb) esclareceu que, nos últimos cinco anos, promoveu diversas benfeitorias nos equipamentos públicos do centro, com destaque para a Revitalização da Praça Dom Vital, em São José, Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista, além das Praças do Arsenal, da Comunidade Luso Brasileira e Tiradentes, no Bairro do Recife, e que os serviços realizados apenas nestas localidades somam mais de R$ 2 milhões. Afirmou, também, que realiza periodicamente limpeza, vistorias e ações de reparos nas praças, como na Osvaldo Cruz e Dezessete.

O Plano Diretor do Recife, sancionado em dezembro de 2020, também definiu diretrizes para o planejamento urbano da cidade na próxima década. Entre as medidas direcionadas para o Centro, são previstos: incentivo à implantação de usos residenciais para todas as faixas de renda; estimular as edificações privadas de uso público como espaços de permeabilidade e articulação no território; dinamizar os espaços públicos tornando-os mais seguros e acessíveis em todos os períodos do dia e estimular a mobilidade ativa, com a ampliação e tratamento de calçadas.

"Os centros das cidades, de maneira geral, guardam a identidade da cidade. É no centro que a gente vai encontrar todo o nosso DNA. Precisamos de uma forma muito rápida fazer com que isso (o Plano Diretor) seja materializado e executado. Que tenhamos um grande pacto para resgatar e ressignificar o Centro com o empresariado, com o poder público, com as instituições, com as ONGs e comunidades. Só o poder público, não vai fazer. Precisa ser um acordo de todos", disse Salomão.

O arquiteto também defende que o Centro já abriga toda a infraestrutura necessária para a moradia, como transporte público, abastecimento de água e energia elétrica, e que seria "muito mais fácil trabalhar o retorno". Segundo Rafael Dubeux, esse é justamente o objetivo da Prefeitura do Recife. "A ideia não é destruir prédio, sobretudo os históricos, nem nada, é revitalizar. O comércio do centro é muito forte, mas com isso pode ganhar ainda mais força".

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Antes, eu me sentia feliz, porque a cidade estava movimentada. E, com tudo isso, quem perde somos nós<br>

Comerciante Manoel Sebastião da Silva, 62 anos
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Quando vou lá [no Centro], eu choro. É uma dor enorme

Professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Biu Vicente

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