SEMIÁRIDO

Oásis no Agreste: a história de Jefferson, menino que não sabe o que é a seca, mesmo morando no semiárido nordestino

Aos 9 anos, Jefferson Lima planta, colhe e brinca no rio, em sua casa - localizada no município de Vertentes, no Agreste -. Tudo isso é possível graças à construção de uma cisterna que armazena água e livra a família do garoto da seca no Semiárido brasileiro

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Julianna Valença

Publicado em 10/10/2021 às 7:00 | Atualizado em 10/10/2021 às 18:50
ROTINA Menino, que vive numa área de zona rural, tem forte relação com o plantio e a natureza. Para ele, passar um tempo cuidando da terra, todos os dias, é motivo de alegria - ANA MENDES/ACERVO CENTRO SABIÁ

Em meio à plantação se vê milho, feijão, fava, mamão, sapoti, couve e também José Jefferson de Lima. É assim que o garoto de 9 anos gosta de passar o tempo: na horta do quintal da sua casa - localizada na zona rural de Vertentes, no Agreste de Pernambuco -, nos cuidados com a terra. Até pouco tempo antes do nascimento do garoto, essa realidade não era vislumbrada nem em sonho. As três gerações da família anteriores a ele viveram e sobreviveram à seca que assola o semiárido em períodos de estiagem. Graças à instalação de uma cisterna de captação e armazenamento da água da chuva na casa do menino no ano de 2012, os tempos de escassez ficaram restritos às memórias do passado para seus familiares.

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Instalada pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), a primeira cisterna que chegou à casa de Jefferson tem capacidade de armazenar 16 mil litros de água para o consumo humano. A captação é feita nos períodos de chuva e alagamento na região. 

“Antes da cisterna a gente tinha que andar muito para encontrar água e era barrenta para beber. A terra por aqui também não dava para plantar nada. Eu com 9 anos me lembro que ia buscar água, acho que uma distância de quatro a cinco quilômetros ou mais, com lata na cabeça. Tinha que pegar longe, nos povoados vizinhos, ia pro barreiro”, relata José Severino, pai de Jefferson.

Desde que foi criado, em 2003, o programa nacional de construções de cisternas em locais de seca desempenhou um importante papel social e já impactou mais de 1 milhão e 200 mil famílias no semiárido. Esse quantitativo foi parte da meta estabelecida pela ASA em 1999, que estimou a necessidade de 1 milhão de cisternas para a região e lançou o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).

O Sítio Caruá, em Vertentes, no Agreste Setentrional Pernambucano. - Acervo pessoal
O Sítio Caruá, em Vertentes, no Agreste Setentrional Pernambucano. - Ana Mendes/Acervo Centro Sabiá
O Sítio Caruá, em Vertentes, no Agreste Setentrional Pernambucano. - ANA MENDES/ACERVO CENTRO SABIÁ

O recurso hídrico criou um mundo particular para Jefferson. A sua relação com o plantio e a natureza moldam quem ele é. Ainda criança, o garoto foi apelidado por quem frequenta a casa da família de “menino agroecológico” e faz jus ao termo. “Aqui eu me divirto quando pesco no rio, rego as plantas, nado no barreiro… brincar na água é bom, às vezes eu pego até uma piaba!”, descreve o garoto, com bastante empolgação.

Na casa da família Lima, a seca fica apenas no imaginário dos filhos e na memória dos pais. “Escuto que antes da cisterna a terra não era tão bem tratada como é agora. Eu penso que era ruim”, declara o filho mais novo. "Era uma realidade sofrida, que não tínhamos muitos recursos para poder produzir. Agora mais velha eu percebo que essa era uma realidade diferente da que eu vivo", conta Estefanny Lima, de 14 anos.

O Sítio Caruá, em Vertentes, no Agreste Setentrional Pernambucano. - Ana Mendes/Acervo Centro Sabiá

O mundo particular de Jefferson

Em 2018, a família Lima foi uma das contempladas também com uma segunda cisterna, esta para plantio e criação de animais, com capacidade de 52 mil litros de água. A construção foi o que possibilitou a subsistência da família. A horta de produtos orgânicos cuidada nos arredores da casa garante o alimento e a renda dos Lima, que comercializam os itens produzidos para vizinhos e em feiras.

“Graças a isso, a nossa comunidade mudou. Graças a Deus temos uma variedade de frutas e verduras que plantamos e podemos abastecer a própria comunidade com alimento saudável. Temos até uma criação de abelha, com cerca de 45 colmeias, tudo isso depois da construção”, conta José Severino.

Sem a água, quem seria Jefferson? Possivelmente as suas paixões, brincadeiras e sonhos seriam outros. “Quando eu crescer eu quero ser agrônomo, trabalhar com a terra. Me dedico aos estudos para isso. Agora, o meu maior sonho mesmo é ter uma rede de pesca", diz o garoto.

Campanha Tenho Sede

Muitas famílias no semiárido brasileiro ainda convivem com o fenômeno da seca - cada vez mais severo - sem assistência pública. “É preciso construir estratégias para conviver no ambiente com as características de chuva e longas estiagens do semiárido. A cultura da estocagem de água, sementes, alimento e animais, é fundamental para que a população consiga viver com um pouco mais de tranquilidade e dignidade. Isso pode ser feito com o uso de tecnologias sociais de baixo custo e impacto ambiental, mas com grande papel social”, explica o coordenador da ASA, Alexandre Pires.

A garantia do acesso à água, especialmente de chuva, é um dos elementos presentes na proposta de Convivência com o Semiárido defendida pela ASA. Para garantir isso às outras famílias da região, a rede, formada por mais de três mil organizações, está lançando a campanha Tenho Sede. A intenção é mobilizar recursos financeiros para a construção de mais um milhão de cisternas de placas no semiárido, com base numa estimativa levantada pelo próprio Governo Federal, em 2019. As doações poderão ser feitas por meio do site www.tenhosede.org.br. 

A ação é fruto de doações, financiamentos internacionais e programas governamentais. Entretanto, a articulação relata que, desde 2015, as verbas destinadas pelo Governo Federal para a programas de construção de cisternas vem sofrendo cortes, chegando a perder até 90% do orçamento. "Os rumos da política brasileira nos últimos anos levaram o País a voltar ao Mapa da Fome Mundial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A sede também segue sendo um problema, faltando reservatórios para armazenar a chuva e assim garantir água para as famílias beberem e produzirem alimentos", informa a ASA, em nota.

Dotação Orçamentária:

Ano Verba
2011 R$ 779,4 milhões
2012 R$ 1,38 bilhão
2013 R$ 1,14 bilhão
2014 R$ 845,1 milhões
2015 R$ 340,4 milhões
2016 R$ 148,7 milhões
2017 R$ 52,5 milhões
2018 R$ 75,9 milhões
2019 R$ 75 milhões

*Com informações do UOL

A reportagem do JC entrou em contato com o Ministério da Cidadania a respeito dos investimentos ao programa durante a pandemia da covid-19. Segundo o órgão, o valor repassados para o "Programa Cisternas" dos anos de 2021 foram de R$ 31 milhões, número este que representa menos de 50% da verba destinada em 2019. No entanto, a verba investida no ano de 2020 não foi informada.

O Ministério afirmou em nota que houve a necessidade de "instituir medidas de segurança" em decorrência da pandemia do covid-1, e que isso "tem impactado no volume de entregas [das cisternas] desde o ano passado". "Os recursos disponibilizados para execução do Programa Cisternas em 2021 serão alocados de forma técnica e impessoal, a partir de indicadores formulados por estudos de órgãos federais", escreveu o órgão.

 

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