ARQUITETURA HOSTIL: Recife se torna a primeira capital a proibir técnica dias após Bolsonaro vetar lei

A proposição tem o objetivo de impedir a instalação de elementos que dificultem a utilização de equipamentos públicos pelas pessoas em situação de rua ou dificultar a circulação de toda a população
Katarina Moraes
Publicado em 16/12/2022 às 12:01
Na Rua Ernesto de Paula Santos, em Boa Viagem, estacas de ferro foram fixadas embaixo de possível local de abrigo Foto: DAY SANTOS/JC IMAGEM


O prefeito João Campos (PSB) sancionou, nesta sexta-feira (16), a "Lei Padre Júlio Lancellotti", fazendo com que o Recife se torne a primeiro capital do Brasil a proibir o uso de técnicas de arquitetura hostil. Apesar da proposição ser um avanço, não prevê punições ou como a fiscalização será feita a fim de coibir a prática.

A sanção vem dias após o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetar o projeto de lei nacional no qual a vereadora Liana Cirne (PT), propositora da lei municipal, se inspirou.

O texto impede a instalação de elementos que dificultem a utilização de equipamentos públicos pelas pessoas em situação de rua; ou dificultar a circulação de idosos, jovens, pessoas com limitações de locomoção ou de outros segmentos da população.

Assim, proíbe a instalação de pedras pontiagudas ou ásperas, pavimentações irregulares, pinos metálicos pontiagudos, cilindros de concreto nas calçadas e bancos divididos.

“Eu tive a oportunidade de conversar ao longo de todo o processo com a vereadora Liana Cirne e hoje de sancionar esta nova lei recifense, que mostra como o Recife é. Um Recife que é acolhedor, generoso e que tem a preocupação de cuidar das pessoas e de trazer a proteção jurídica para isso. Com essa lei a gente tem o compromisso da cidade. Mais que um compromisso, uma obrigação de fazer uma arquitetura adequada, humanista e que acolha as pessoas”, disse o prefeito.

A lei foi inspirada em proposição do senador Fabiano Contarato (PT), que foi aprovada na Câmara Federal e no Senado, mas vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O presidente argumentou que a norma poderia "ocasionar uma interferência na função de planejamento e governança local da política urbana, ao buscar definir as características e condições a serem observadas para a instalação física de equipamentos e mobiliários urbanos".

O nome da lei é uma homenagem ao padre Júlio Lancellotti, da paróquia de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, que ficou conhecido nacionalmente pelo seu ativismo no combate à aporofobia - a aversão aos pobres. 

No momento da sanção, o prefeito telefonou para o Padre, que elogiou a iniciativa. “Vocês estão de parabéns. Recife é a primeira capital brasileira a fazer isso e tinha que ser uma cidade nordestina. Vamos divulgar isso para que sirva de exemplo para o país”, ressaltou.

“O Padre Julio é um exemplo de luta contra aporofobia. No dia em que ele pegou uma marreta para quebrar aqueles paralelepípedos pontiagudos, me emocionei muito e emocionou o Brasil inteiro. É muito bom ter uma lei com o nome do Padre Julio, que resgata a sua dedicação à população em situação de rua e que resgata sua luta contra o preconceito. Que esse seja só o primeiro passo para termos uma cidade e um país sem violência e mais humana”, disse a vereadora Liana.

Segundo a Prefeitura do Recife, a lei se somará à Política Municipal de Atenção Integral à População em Situação de Rua, que tem como objetivo garantir serviços e atendimentos em atenção a todas as pessoas em situação de rua sem qualquer distinção, além de viabilizar formas alternativas de participação e desenvolvimento de atividades socioeducativas.

O que é a arquitetura hostil

A arquitetura hostil pode passar despercebida para a população em geral, mas se tornam mais uma violação do direito à cidade a quem já menos o detém: as pessoas em situação de rua, idosos, crianças e pessoas com dificuldade de locomoção. Alguns exemplos é a instalação de ferros pontiagudos debaixo de marquises, refletores virados para a calçada e retirada de bancos de espaços públicos.

Lancellotti foi um dos precursores do; quando, em meio à pandemia da covid-19, retirou a marretadas vários blocos de pedras pontiagudas afixados pela Prefeitura de São Paulo para impedir que a população de rua se abrigasse debaixo de viadutos.

Mas a tendência não está reservada à metrópole paulista. Na capital pernambucana, já é possível enxergar exemplos do tipo em diferentes regiões. Em reportagem publicada em agosto, o JC identificou pinos que impedem a permanência de quem vive nas ruas em estabelecimentos comerciais do Centro e da Zona Sul do Recife.

Na cidade, a última contagem da quantidade de pessoas de rua, feita em 2019, apontava que havia 1.400 sem teto na cidade. Um novo censo é feito em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), com previsão de que seja concluído em dezembro; mas, mesmo sem o resultado, o aumento dessa população nos últimos anos é claro.

Durante debate sobre o assunto na Rádio Jornal, o arquiteto e urbanista Francisco Cunha chamou atenção para a necessidade de não apenas coibir a arquitetura hostil, mas de planejar uma cidade que seja mais amigável para todos.

“Você não consegue, ou consegue sob alto risco de vida, ir do Pina até Santo Amaro a pé. Vai ter que passar pelo viaduto das 5 pontas, que não tem passagem para pedestres, não vai conseguir andar o Cais José Estelita, porque não tem sombras. Isso é hostilidade. Precisamos transformar a cidade em algo bom de se viver”, disse.

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