Indo de encontro à Lei do Carnaval de Olinda, diversos camarotes vão funcionar durante os quatro dias de festa no Sítio Histórico. A proibição de atrações privadas tem como intuito manter o caráter democrático da folia cidade - o que a tornou conhecida ao redor do mundo.
A Lei Municipal 5.306/2001 permite o sistema 'day use', que são pontos de apoio para que o folião possa comer, hidratar-se, ir ao banheiro e descansar, desde que não promovam focos de animação na Cidade Alta.
Ainda, estabelece uma multa de R$ 7 mil aos inquilinos e proprietários do imóvel que utilizem equipamentos de som na região, aplicada em dobro em caso de reincidência, além da apreensão do equipamento a ser recolhido em depósito público.
Mesmo assim, a reportagem do JC identificou pelo menos sete estabelecimentos, entre restaurantes, pousadas e produtoras de festa, que divulgam o evento como ‘day use’, mas também garantem shows particulares e DJs nos anúncios, com ingressos que chegam a até R$ 500.
“Infelizmente, 95% das casas ‘day use’ são casas camarotes, com programações de artistas e cobrança de ingressos, quando não deveriam nem ter equipamentos sonoros”, criticou Edmilson Cordeiro, representante da Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (Sodeca).
“Elas são divulgadas como opção para brincar o Carnaval com segurança, quando a segurança também deveria estar nas ruas”, disse Edmilson.
Em matéria publicada pelo JC sobre a rotina das orquestras no Carnaval de Olinda, músicos tinham como uma das principais reclamações o uso de sons mecânicos pela cidade.
“Se vem duas orquestras numa rua, ou as duas param, ou uma para e espera a outra passar. Mas às vezes o pessoal não está nem aí para desligar o som mecânico. É uma falta de consideração com quem toca o instrumento”, contou o maestro Carlos Rodrigues, que comanda a orquestra que leva seu nome.
Presidente da Pitombeira dos Quatro Cantos, tradicional bloco de Olinda, Hermes Neto acredita que neste ano haverá mais camarotes que nos anteriores e demonstra preocupação de que isso possa atrapalhar os desfiles.
“Eles estavam sendo proibidos há alguns anos, mas acho que na volta desse Carnaval vão ter mais. É ruim porque as pessoas ficam na frente dos camarotes e não abrem para a gente passar. A maioria desliga o som quando a gente fala, mas outros nem escutam”, disse Hermes.
Em 2019, o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda (CPSHO) chegou a proibir o funcionamento de nove estabelecimentos privados que promoviam atrações semelhantes. Em 2018, a juíza do Fórum de Olinda Maria Cristina Fernandes de Almeida fez o mesmo.
“A lei foi criada com a intenção de assegurar que Olinda permanecesse com carnaval de rua sem diferenciação de classe, mas essas casas vão se transformando em camarotes com as pessoas dentro ou defronte das casas, e os blocos não conseguem passar”, explicou a arquiteta e urbanista Vera Millet, integrante do CPSHO.
Neste ano, o conselho ainda não se reuniu para discutir a realização da festa. “O planejamento desse Carnaval sequer passou pelo Conselho. Não tivemos uma apresentação oficial do projeto. Estamos com muita insegurança porque nenhuma das perguntas foram respondidas”, afirmou Vera.
A falta de transparência também se estende à Sodeca, segundo Edmilson. “A Prefeitura diz que faz esse planejamento, mas não o vemos.”
Ambos também alegam que as calçadas das casas estão sendo ocupadas sem ordenamento pelos comerciantes ambulantes, impedindo um espaço de respiro para os foliões e de saída dos moradores do Sítio Histórico.
Na solicitação que os estabelecimentos 'day use' precisaram enviar à Prefeitura de Olinda, havia a necessidade de informar quais 'atrações' haveria - permitindo que elas acontecessem.
O que diz a Prefeitura de Olinda?
Por nota, a Prefeitura disse ter cadastrado e licenciado os responsáveis por meio da apresentação de documentos pessoais, como RG, CPF e comprovante de residência, além de declarações, atestados e autorizações, de acordo com o segmento.
Acrescentou que o "o alvará de localização e funcionamento emitido pela Prefeitura de Olinda é baseado no Decreto do Carnaval" e que "caso qualquer local desrespeite as leis, estará com uma força-tarefa para coibir qualquer ação."
Em janeiro, a Prefeitura de Olinda foi pressionada pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) a atualizar a Lei de Uso e Ocupação do Solo, que ordena o funcionamento dos estabelecimentos no Sítio Histórico.
Através dela, a cidade estabelece normas para a Cidade Alta, definindo o que é ou não permitido em seus ambientes públicos.
A demanda por um processo de revisão se arrasta há pelo menos oito anos, já que a legislação ainda vigente — a Lei Municipal nº. 4.849/92 — é de 1992 e já não atende mais às demandas atuais da população local.
Esse e outros motivos levavam estabelecimentos comerciais a serem multados com constância pelas irregularidades avistadas em relação à lei. Ela, por exemplo, proíbe a instalação de antenas de Wi-Fi — uma realidade já presente e inerente à região.
Por isso, o MPPE realizou uma audiência pública em 2015, ainda na gestão de Renildo Calheiros (PC do B), onde as autoridades municipais concordaram com a necessidade de revisão dos usos permitidos no Sítio Histórico. Ainda, a gestão enviou uma lei provisória para impedir as autuações por desconformidade à legislação.
O processo chegou a ser iniciado, mas foi pausado pela alegação da Prefeitura de que precisaria, primeiramente, elaborar o Plano de Gestão do Sítio Histórico e revisar o Plano Diretor do Município. Ambos foram feitos — em 2016 e em 2019, respectivamente, mas até hoje a Lei de Uso e Ocupação não foi atualizada.
As consequências para a falta de revisão são diversas. Os moradores locais têm brigado há anos por medidas que coloquem ordem na Cidade Alta, porque as perturbações causadas por festas nas ruas, principalmente aos finais de semana, são constantes; assim como a insegurança urbana.
“Tenho procedimentos sobre poluição sonora, desordem. Os moradores se ressentem muito de ver aglomerações, pessoas urinando, brigas, consumo exacerbado de bebida alcoólica nos muros de ruas casas. Se eles saírem de lá — como muitos já fizeram — perdemos os principais vigilantes naturais do patrimônio histórico”, disse a promotora Belize Câmara.
Então, foi dado um prazo de 180 dias corridos para que a equipe do Professor Lupércio (Solidariedade) a entregue. “Claro que esse prazo não é peremptório, podem apresentar justificativas de dificuldades para obediência, mas é um norte”, afirmou a promotora.
O processo de revisão tem diversas fases: desde estudos técnicos até audiências e oficinas com a população local, para que apresentem os problemas e suas demandas.
Por nota, a Prefeitura de Olinda disse ter iniciado as discussões sobre a revisão da lei há mais de um ano e que deve apresentar um cronograma de implantação das ações após o Carnaval de 2023. (Leia a nota completa no final da matéria).
Segundo Belize, o MPPE vai acompanhar o processo no que o compete. “Acredito que tem usos que deveriam continuar suspensos como lei de hoje e que outros podem se adequar”, alegou.
Millet considera imprescindível que a atualização contemple medidas que impeçam a região de se tornar predominantemente comercial.
“A Rua do São Bento era predominantemente habitacional, mas agora tem um trecho praticamente sem residências, com bares e restaurantes. O pessoal também deixa de alugar para moradia para alugar só durante o Carnaval. Temos que encontrar uma solução a essa questão do ponto de vista de planejamento”, disse.
Ainda, que mantenha regras rígidas de tipologia dos imóveis, a fim de preservar o corpo arquitetônico que atrai os olhares do mundo para Olinda.
“As pessoas burlam a lei, e não há fiscalização. Tem imóveis que pedem para se registrar como centro cultural, pois a legislação permite, mas se transformam em casas de shows e espetáculos — que também expulsam a população”, pontuou a especialista.