Um recorde no número de infectados e mortos pelo novo coronavírus, associado ao isolamento em relação à sua própria equipe e a líderes globais, resultou nesta terça-feira (31) na mudança do tom adotado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao tratar da pandemia. Se na manhã desta terça, ao deixar o Palácio da Alvorada, o presidente distorceu o discurso do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, para insistir na tese de que trabalhadores informais deveriam voltar ao trabalho, à noite, em cadeia de rádio e televisão, a narrativa presidencial já era outra, embora o mesmo discurso de Adhanom tenha sido citado.
Bolsonaro classificou o combate ao vírus como o “maior desafio da nossa geração”, destacou que não há ainda medicamentos com eficiência cientificamente comprovada, pregou a “colaboração” e “união” de todos – inclusive os governadores atacados por ele nas últimas semanas – e não defendeu, como vinha fazendo, o fim do isolamento social das pessoas que não atuam em serviços essenciais. “Todos nós temos que evitar o máximo qualquer perda de vida humana”, justificou.
Ainda assim, o quarto pronunciamento presidencial em um mês foi novamente marcado por um longo panelaço em várias capitais brasileiras.
A gravação do discurso ocorreu enquanto, no salão do Palácio do Planalto, os ministros Braga Netto (Casa Civil), Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça) se colocavam ao lado de Luiz Henrique Mandetta para mostrar alinhamento do governo e referendar a posição técnica do ministério da Saúde como a bússola para o enfrentamento da crise.
Uma mesa formada pelos principais ministros envolvidos no combate ao coronavírus explicitou uma união em torno da posição de Mandetta pela necessidades de manutenção de medidas de distanciamento social. “Os ministros concordam plenamente com a posição do ministro Mandetta”, disse Braga Netto, depois de o titular da Saúde responder sobre orientações da OMS à respeito da prevenção à epidemia.
Ainda na entrevista, Paulo Guedes disse estar seguindo as orientações do Ministério da Saúde. “Nós fomos atingidos por essa onda. Essa onda é da maior gravidade, daí o nosso estado de calamidade pública. Nós estamos sob orientação do ministro Mandetta, então, estamos em isolamento oficialmente”, disse Guedes.
Já Sergio Moro defendeu que o isolamento social é justamente um dos fatores que têm evitado que o coronavírus chegue aos presídios brasileiros até agora. “Há um ambiente de relativa segurança para o sistema prisional em relação ao coronavírus, pela própria condição dos presos de estarem isolados da sociedade”, afirmou Moro, acrescentando que a situação não é “muito diferente das restrições a que os cidadãos brasileiros estão sendo submetidos”.
A cena ilustrou um apoio a Mandetta, desgastado pelas posições que o presidente da República vinha adotando a favor do isolamento vertical, que tem restrições mais brandas do que as recomendadas até aqui pelo Ministério da Saúde. A unidade dos ministros ocorre num momento em que a ascensão do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, tem incomodado o alto escalão da Esplanada dos Ministérios. Alguns ministros chegaram à avaliação de que, hoje, se criou um governo paralelo para a condução da crise, dada a influência do vereador sobre o presidente.
A decisão de Bolsonaro de instalar o filho em uma sala próxima a seu gabinete no Planalto deu força à avaliação de que a família tem tido mais influência sobre o presidente do que o próprio ministério.
Outra sinalização da divisão dentro do governo veio na elaboração do texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) chamada de “Orçamento de Guerra” no Congresso. A proposta previa antes que caberia a Mandetta comandar um comitê gestor dos recursos. Agora, o texto diz que isso fique concentrado nas mãos do presidente.
O ministro Braga Netto tem assumido a função de apaziguar o clima no governo. Embora a postura de Bolsonaro também esteja incomodando parte da ala militar, a avaliação é a de que, neste momento, é preciso agir para que se consiga, ao menos, passar à sociedade a imagem de que todos estão atuando em conjunto.
Segundo a reportagem apurou, Bolsonaro mostrou irritação com os recentes gestos de Guedes e Moro a favor do isolamento social defendido por Mandetta. O presidente se sente desautorizado pelos auxiliares, mas, hoje, não teria condições políticas de aventar qualquer demissão em sua equipe.
Entre os militares, também há divergências. Enquanto o vice-presidente, general Hamilton Mourão, já se posicionou a favor do distanciamento social e o Ministério da Defesa e a Casa Civil têm atuado em parceria com a Saúde, as ideias até hoje expressadas pelo presidente pelo fim do isolamento encontram eco entre generais da cúpula das Forças Armadas e dão vazão à posição do presidente.
No pronunciamento, Bolsonaro elencou medidas anunciadas pelo governo tanto na saúde como na economia. “Temos uma missão: salvar vidas sem deixar para trás os empregos. Por um lado, temos que ter cautela e precaução com todos, principalmente junto aos mais idosos e portadores de doenças pré-existentes. Por outro, temos que combater o desemprego, que cresce rapidamente, em especial entre os mais pobres. Vamos cumprir esta missão. Ao mesmo tempo em que cuidamos da saúde das pessoas”, disse.
O presidente justificou a ênfase que tem dado no aspecto econômico da covid-19 alegando que precisa pensar “além dos próximos meses”. “O efeito colateral de medidas de combate ao coronavírus não pode ser pior do que a própria doença. A minha obrigação como presidente vai para além dos próximos meses. Preparar o Brasil para sua retomada, reorganizar nossa economia e mobilizar todos os nossos recursos e energia para tornar o Brasil ainda mais forte após a pandemia”.
Alvo de críticas constantes, também mudou seu tom em relação ao Congresso e aos governadores. “Com este mesmo espírito, agradeço e reafirmo a importância da colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade”, disse Bolsonaro.
Esta é a quarta vez que o presidente chama o sistema de rádio e TV para falar do novo coronavírus. Na última ocasião, na terça-feira da semana passada, ele foi incisivo nas críticas ao distanciamento social e ao isolamento da população, recomendados por autoridades sanitárias, entre elas o próprio Ministério da Saúde e a OMS.
O discurso aprofundou a crise no País, causou perplexidade em associações médicas, estimulou panelaços contra o presidente e ampliou o seu isolamento político.
Pelo 15º dia seguido, Bolsonaro foi alvo de panelaços em capitais pelo País. No Recife, o barulho das panelas foi ouvido em bairros como Boa Viagem, Setúbal, Arruda, Casa Forte, Espinheiro, Areias, Graças, Torre, Madalena, Encruzilhada e Santo Amaro.
Os protestos também aconteceram em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba e Porto Alegre.
Os panelaços foram mais fortes do que os dos últimos dias. Houve gritos de “fora”, de “fascista” e de “genocida”. Algumas pessoas respondia, de forma mais fraca, “mito”. Em 2015, os panelaços tinham sido um símbolo da insatisfação com a então presidente Dilma Rousseff (PT), que sofreu impeachment no ano seguinte.