SEGURANÇA

Lei de Segurança Nacional ressurge no debate político brasileiro; entenda porque isso pode ser problemático

A lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e a pessoa dos chefes dos Poderes da União

Cássio Oliveira Mirella Araújo
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Cássio Oliveira
Mirella Araújo
Publicado em 20/03/2021 às 8:00
MARCELLO CASAL J/RAGÊNCIA BRASIL
SUPREMO Fato de o próprio STF fazer uso da LSN abre brecha para que o Executivo recorra à mesma regra - FOTO: MARCELLO CASAL J/RAGÊNCIA BRASIL
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Considerada “adormecida” desde o regime ditatorial no Brasil, a Lei de Segurança Nacional (Nº 7.170/1983), tem sido evocada nos últimos anos com uma frequência maior, mas o debate sobre sua aplicabilidade repercutiu mais recentemente após os casos envolvendo o youtuber Felipe Neto, e o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), ambos enquadrados com base nesta legislação.

A lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e a pessoa dos chefes dos Poderes da União, tem sido evocada com mais frequência nos últimos anos. Entretanto, especialistas ouvidos pelo JC, consideram que a LSN deveria ser revista ou até mesmo revogada do ordenamento jurídico. Isso porque seus dispositivos dialogam com o regime autoritário no qual ela foi redigida.

 

“Essa lei não deveria continuar, ela foi editada na época da ditadura militar e está muito aberta à subjetividade. No âmbito do direito penal, uma das características para garantia da liberdade, é que a pessoa tenha plena consciência daquilo que pode ou não fazer, sob pena de pagar o preço com sua liberdade. Então não há a possibilidade de pensar em tipos penais abertos”, explica o professor de Direito Constitucional na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Marcelo Labanca.

“Aplicá-la hoje da forma como está sendo aplicada para impedir a liberdade de manifestação de pensamento é um grave problema. Outro problema é que ela estabelece jurisdição federal, mas começamos a observar policiais militares, delegados de Polícia Civil, que são estaduais, querendo ter protagonismo em relação à aplicação e jurisdição de uma lei federal”, declara Labanca.

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O Youtuber Felipe Neto, foi intimado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para responder pela acusação de crime contra a segurança nacional, por ter chamado o presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) de “genocida”, em publicação no seu perfil do Twitter. Neto tem feito inúmeras críticas sobre a forma como o presidente tem conduzido as ações do governo federal durante a pandemia da covid-19, que atingiu a marca de mais de 290 mil mortos. A denúncia foi feita pelo filho do chefe do Palácio do Planalto, o vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (Republicanos). Nessa quinta-feira (18), a justiça suspendeu as investigações por reconhecer a ilegalidade da instauração do procedimento criminal.

“Felipe Neto estava fazendo uma crítica contundente à figura do presidente, mas não o estava ameaçando ou o expondo a perigo, tampouco atacou o regime democrático. Existem outros mecanismos legais menos gravosos para apurar eventuais exageros na conduta do youtuber em relação ao presidente: processo penal simples por calúnia ou difamação e ainda ação civil por danos morais, por exemplo”, avalia o doutor em Direito e mestre em Ciência Política, Emerson de Assis.

No caso do deputado federal Daniel Silveira, o STF ordenou a prisão em flagrante do parlamentar com base na Lei de Segurança Nacional, após a veiculação de um vídeo em que ele ameaça os ministros da Suprema Corte e faz apologia ao AI-5, o ato institucional de grande repressão na ditadura militar. “A utilização do Supremo nesse mecanismo não se deu num vazio, existe um contexto que já vinha sendo investigado no Brasil, envolvendo a questão das Fake News e do financiamento de atos antidemocráticos”, comenta a cientista política e professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, Priscila Lapa.

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No entanto, na avaliação do professor Marcelo Labanca, nestes casos mais recentes não seria preciso acionar a Lei de Segurança Nacional. O STF, por exemplo, poderia ter utilizado o Código Penal. “O STF já deveria ter declarado que ela (LSN) não foi recepcionada. E o que é isso? É quando analiso leis anteriores à Constituição e se verifica uma colisão entre a lei e a Constituição, uma incompatibilidade superveniente. Veio a Constituição com hierarquia maior e ela abre a porta para recepcionar no novo ordenamento as leis compatíveis com a ela. Leis incompatíveis não entram. Então, o Supremo, por exemplo, pode declarar como não recepcionada a lei da anistia. Se analisa, verifica a incompatibilidade, verifica se é anterior ou posterior à Constituição. Se for posterior a lei pode ser declarada inconstitucional. Se for anterior, a lei é considerada não recepcionada”, explica o docente.

DEBATE

Um dos pontos centrais desse debate é: se o Supremo Tribunal pode evocar a lei para embasar suas decisões, o governo federal não poderia fazer o mesmo? O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro chegou a ameaçar abrir um inquérito contra o ex-presidente Lula com base na LSN, por ele ter chamado o presidente Jair Bolsonaro de “miliciano”.

O próprio Supremo também  já foi alvo da Lei de Segurança Nacional, em julho de 2020, quando o Ministério da Defesa enviou à Procuradoria-Geral da República uma notícia de fato contra o ministro Gilmar Mendes. “O Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso", declarou Mendes em uma live - na época em que Eduardo Pazuello assumia o Ministério da Saúde de forma interina.

De acordo com o levantamento feito pelo Estadão, o número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer. Houve um total de 20 inquéritos entre os anos de 2015 e 2016. Já entre 2019 e 2020, foram 77 investigações. Em relação a outras cinco categorias de inquérito pesquisadas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação - que incluem os principais crimes contra a administração pública -, as apurações baseadas na Lei de Segurança Nacional (LSN) foram, de longe, as que registraram maior aumento.

 “O governo Bolsonaro tem arroubos de flertar com essa quebra do regime democrático, então é como se ele tivesse usado o pretexto da evocação da lei pelo Supremo, para trazer essa questão da crítica contra o governo. Estamos percebendo um aumento no número de medidas que visam cercear as pessoas que fazem críticas ao presidente. São reitores de universidades, pessoas públicas”, afirma Priscila Lapa.

Do ponto de vista do Poder Judiciário, o professor de Direito e advogado, Deco Costa, faz um alerta para embate não só político, mas jurídico dessa legislação. “Nós podemos estar abrindo uma caixa de pandora e o judiciário parece não entender o quão grave é se estimular uma legislação que tinha sua estrutura no regime autoritário. Como uma lei como essa pode ser compatibilizada dentro de uma estrutura democrática, se ela foi feita exatamente para reprimir a liberdade maior”, afirma Deco Costa.

O professor Emerson de Assis, corrobora a tese da defesa de que caberia ao Congresso Nacional se debruçar sobre a revisão ou substituição da lei por uma norma mais adequada ao regime democrático. Segundo o docente, é necessário ter no Brasil, leis que estabeleçam punição para ameaças às instituições democráticas e que coíbam apologias à ditadura.

“Meu temor é que a Lei de Segurança Nacional seja usada como mecanismo de coibir críticas ao governo federal e perseguir a oposição. Isto é um sintoma, como já disse, de clara falha na Justiça de Transição brasileira que não conseguiu superar totalmente o período autoritário. Na democracia, as críticas fazem parte do jogo político, devendo somente o abuso e o exagero ser proibidos ou punidos”, afirmou.

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