O pequeno Lucas, de 5 anos, aproxima-se quando percebe que a avó está chorando. Abraçado a ela, também chora. Apesar da pouca idade, o neto de dona Cristina entende o que se passa. Sempre que a avó está desse jeito, é porque não tem comida em casa.
“Não fique assim vó, a senhora vai voltar a vender passarinha”, tenta consolar o menino, lembrando de quando ela ganhava dinheiro com o petisco.
Moradora do Beco do Galego, na comunidade do Bode, no bairro do Pina, Zona Sul do Recife, dona Maria Cristina dos Santos, de 57 anos, é uma avó-heroína. Em sua pequena casa, com apenas dois vãos, ela abriga hoje 16 netos.
Diante do desemprego e da queda na renda, dona Cristina precisou garantir teto às famílias de quatro filhos. Era isso, ou deixá-los desabrigados.
A nora Jéssica Cândida de Souza, de 31 anos, conta que morava com o marido e os quatro filhos, na casa de sua mãe, também no Pina, quando a palafita ameaçou cair e foram obrigados a deixar o lugar.
“Ouvimos os estalos e saímos, antes que desabasse tudo. Minha mãe alugou uma casa bem pequena, enquanto ia reconstruindo a palafita. Aí, eu, meu marido e nossos filhos tivemos que vir para a casa da minha sogra”, recorda.
Quando chegou na casa de dona Cristina, sua cunhada já estava lá com o marido e os oito filhos do casal. Além deles, os filhos de mais dois cunhados também ocupavam o lugar. Na época, em 2020, Jéssica tinha três filhos, mas depois nasceu Daniel. Ao todo são 12 crianças, 4 jovens e 4 adultos, totalizando 20 pessoas no lugar.
“Ôia”, Auxílio Brasil e doações
Na casa de dona Cristina ninguém está trabalhando com carteira assinada. Uma nora e a filha recebem o Auxílio Brasil, enquanto os homens vão atrás de fazer “ôia”.
O restante da sobrevivência depende de doações e do esforço desta avó incansável. Antes, ela colocava um tabuleiro nas calçadas da comunidade para vender acarajé e passarinha, mas adoeceu e aguarda o agendamento de uma cirurgia no sistema público de saúde.
“Para alimentar todo mundo, eu preciso colocar duas panelas de arroz no fogo por dia. Muitas vezes não tem mistura (carne), aí faço ovo. Mas tem dias que não tem nem ovo, então comemos arroz puro mesmo. Acordo e durmo pensando se vamos ter o que comer. Se vejo que vai faltar pra eles, não me alimento. Mas tem dias que não tem nada e eu digo: tomem água e vão dormir (com a barriga roncando)”, lamenta dona Cristina, chorando.
A avó da “casa dos 16 netos”, conta com a ajuda de uma rede de solidariedade para amenizar a dor da fome. São vizinhos, amigos, voluntários e instituições, que contribuem para tornar menos difícil a insegurança alimentar na vida da família. A permanência na escola e a merenda escolar ajudam a diminuir o número de refeições feitas em casa.
O Centro de Referência da Assistência Social (Cras), contribui com doação de leite, o Instituto Vizinhos Solidários fornece quentinhas e um vizinho parcela o gás no cartão dele quando o botijão acaba. Além disso, dona Cristina percorre a comunidade em busca da ajuda dos vizinhos quando a situação aperta.
A família de dona Cristina parece ter saído das estatísticas do II Relatório Vigissan, realizado pela Rede Penssan. O estudo mostra que nas residências em que o chefe da família está desempregado, a fome avançou de 27,7% em 2020 para 35,1% em 2021/2022.
Desesperançosa, os sonhos de dona Cristina não são exatamente sonhos. São direitos constitucionais que, neste momento, nem ela nem os filhos nem os netos têm acesso. Questionada sobre o que poderia fazer sua vida melhorar ela responde:
“Queria cama, queria feira para me ajudar. Que nunca faltasse comida. Às vezes eles ficam sem comer nada. Às vezes não tem nada para eles comer nem pra mim. Quando não tem carne eu digo: vai ter que comer arroz assim mesmo. Faço arroz e eles comem tudinho, sem carne, sem nada. Às vezes dá vontade de me matar”, desabafa, tentando expressar seu desespero.
Quem quiser e puder contribuir pode enviar e-mail para a repórter, autora desta reportagem, (adrianaguarda@jc.com.br) e obter o contato da família para fazer doação.
Avanço da fome no Brasil
No final de 2020, 19,1 milhões de pessoas não tinham o que comer no País. No ano seguinte, a nação viveu um revés e, em menos de uma década, voltou ao vergonhoso Mapa da Fome da ONU, depois de sair desta condição em 2014.
Em 2022, o Brasil viveu outro retrocesso: a fome alcançou 33,1 milhões da população, um recorde nacional, atingindo 15,5% das pessoas. Isso quer dizer que 14 milhões de novos brasileiros foram empurrados para a situação de fome em pouco mais de um ano. É como se quase toda a população da Bahia não tivesse o que comer.
Os dados estão no II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
Ao longo da história, a fome mantém algumas peculiaridades. Ela é maior no Norte e Nordeste, entre a população negra, nos lares chefiados por mulheres, nas residências com crianças, quando o chefe de família tem baixa escolaridade e a renda vem do trabalho informal.
No Nordeste, quatro em cada dez famílias convivem com a fome. Nas residências comandadas por pessoas negras, a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre 2020 e 2022.
Nos lares em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nas casas com crianças menores de 10 anos, a falta de comida praticamente dobrou de 9,4% para 18,1%.
Nos casos em que o chefe de família tem baixa escolaridade, o problema cresce de 14,9% para 22,9%. Quando o trabalho de quem comanda a família é informal, a insegurança alimentar avança de 14.3% para 20,3%.
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