Há dez anos governada pelo mesmo partido, com uma oposição tímida na Câmara de Vereadores e carente de lideranças representativas que tenham chances reais de vencer uma eleição para o Executivo municipal, o Recife é a capital com menor saúde democrática do País, aponta o Índice de Vitalidade Eleitoral (IVE) do Instituto Votorantim, lançado nesta terça-feira (20).
O levantamento pode ser verificado em uma ferramenta, de acesso livre e gratuito, que foi criada para lançar luz sobre a cultura cidadã dos mais de 5 mil municípios brasileiros, levando em conta três eixos principais: "Engajamento", "Diversidade e representatividade" e "Alinhamento e competitividade".
A ideia é avaliar como os brasileiros têm se comportado nos processos eleitorais, de que maneira a sociedade vem sendo representada no pleito e de que forma ocorrem tanto a competitividade na disputa eleitoral quanto a governabilidade no pós-eleições.
Para chegar aos resultados divulgados hoje, o IVE usou bases de dados públicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) referentes às eleições de 2018 e 2020, e do Censo de 2010.
A plataforma atribuiu uma nota de zero a 100 a cada município, sendo que quanto mais alta a nota, maior a vitalidade eleitoral da cidade. O total é obtido através do desempenho que o município teve em cada um dos três eixos principais, que possuem pesos iguais, e nos subindicadores que eles têm, com pesos ponderados.
Segundo Rafael Gioielli, gerente-geral do Instituto Votorantim, a média dos municípios brasileiros ficou em 65 pontos, e o Recife registrou apenas 56. Segundo ele, um dos fatores que puxaram a pontuação da capital pernambucana para baixo foi a performance da cidade no eixo "Alinhamento e competitividade", sobretudo no subindicador "Alternância de partidos no poder a nível municipal".
"A gente entende que o processo eleitoral com muita vitalidade é aquele em que você não perpetua determinados partidos no poder, onde você tem alternância. Isso é muito saudável na democracia. E essa não é uma realidade no Recife e em Pernambuco, de forma geral", observou Gioielli, destacando que enquanto a cidade recebeu nota zero nesse subindicador, a média de Pernambuco é de 89 pontos e a do Brasil, 93.
Partido do atual prefeito, João Campos, o PSB está à frente da Prefeitura do Recife desde 2013, quando Geraldo Julio venceu a disputa municipal. No Executivo estadual, os socialistas estão prestes a completar 16 anos no poder, com 8 anos de gestão de Eduardo Campos, mais 8 anos de Paulo Câmara.
"O Recife vem sendo governado pelo mesmo partido há dez anos e o Governo do Estado há 16. Isso quer dizer que há um peso muito grande dessa estrutura partidária, ela é quase hegemônica, porque ela possui o município mais importante e o governo estadual, que também tem estruturas da administração pública na capital. Isso tudo pesa, no sentido de que dá muita força política ao partido que está no poder", pontuou o cientista político Vanuccio Pimentel, da Asces/Unita.
Outro fator que interferiu no baixo desempenho do Recife no IVE foi a sua pontuação no subindicador "Competitividade entre candidatos e partidos", que também integra o eixo "Alinhamento e competitividade". A título de comparação, a capital de Pernambuco registrou 31 pontos neste item, enquanto Goiânia (GO), primeiro lugar entre as capitais, obteve 43.
Em 2020, apenas 3 dos 9 candidatos a prefeito do Recife receberam mais de 200 mil votos no primeiro turno das eleições, e 5 deles não contabilizaram sequer 10% desse montante.
"Nós podemos observar que há muita concentração de votos no Recife. Isso significa que o processo, que o jogo eleitoral não é competitivo. Um fator que influencia neste quadro é a reeleição, e outro é haver pessoas com uma quantidade gigante de votos, enquanto outras não têm quase nenhum. Isso também indica uma baixa vitalidade eleitoral. Não é saudável você ter candidatos que não recebem votos e outros que concentram grandes volumes de votos", explicou Gioielli.
Cientista político da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ernani Carvalho chamou atenção, ainda, para o baixo engajamento do eleitorado recifense quanto ao processo eleitoral. Nas últimas eleições, por exemplo, mais de 230 mil pessoas não compareceram aos locais de votação no Recife, quase o mesmo número de eleitores que levaram João Campos em primeiro lugar para o segundo turno (233.028).
"Há uma taxa de absenteísmo forte aqui na cidade do Recife, que pode ser observada sob diversos aspectos, desde sociais quanto de motivação das pessoas, de buscarem o voto. Existe não só no Brasil, mas no mundo todo, uma ressaca das democracias, uma cobrança muito forte das pessoas pela ausência do cumprimento do que é prometido pelos políticos. Veja o que aconteceu recentemente nos Estados Unidos, que é um País tido como exemplo de democracia estruturada, consolidada. Isso é algo que vem ganhando escala", declarou o docente.
No ranking das dez cidades com melhor desempenho do IVE, destaca-se o Rio Grande do Sul, que tem quatro municípios na lista, incluindo o primeiro lugar, que ficou com Vespasiano Correa. Nenhuma cidade pernambucana está no top 10.
De acordo com Rafael Gioielli, um dado que chama atenção em grande parte dos municípios brasileiros é relacionado à análise do "Alinhamento entre Legislativo e Executivo", que mostra que apenas 39% das cidades do País estão em uma faixa considerada ótima pelo estudo. "A gente tem 61% dos municípios em que provavelmente ou o prefeito vai ter muita dificuldade de governar ou o contrário, vai ter muita facilidade e isso não é bom", afirmou.
Com base no que foi exposto no IVE, Vanuccio Pimentel disse acreditar que mudanças em quadros como o do Recife só poderão se tornar palpáveis com a adoção de reformas políticas e com o engajamento do eleitorado para além do período de campanha política. Segundo o docente, só assim será possível vislumbrar uma mudança na correlação de forças que hoje está posta não apenas na capital, mas no Estado como um todo.
"A partir do momento em que houver uma mudança significativa nesse equilíbrio de forças, que o partido dominante, o PSB, perder força e abrir espaço para outras lideranças e partidos, isso vai fazer com que naturalmente haja uma reorganização nas estruturas dos municípios, porque o jogo de quem é oposição e quem é situação será reconfigurado. E isso termina oxigenando as disputas em todo lugar, porque vai diminuir o peso da máquina, a hegemonia de um partido ou projeto político sobre todos os municípios ou a maioria deles", frisou o estudioso.
Para Ernani Carvalho, não existe "solução fácil" para reverter o quadro recifense. Segundo o cientista político, Pernambuco carece de iniciativas de formação cidadã que estimulem a participação popular na vida política da cidade, e esse tipo de ação poderia ajudar o município a melhorar seu desempenho no ranking.
"Projetos que façam levem a informação sobre como funciona o Estado, quais são os deveres dos políticos, o que é a divisão de poderes, falta educação política à nossa população, isso é evidente. As grandes empresas privadas do Brasil e o Poder Legislativo poderiam investir mais e melhor em cursos para lideranças comunitárias e a população em geral, para que eles compreendam como é o funcionamento das instituições, como é o funcionamento da democracia, eu acho que esse seria um passo interessante", destacou Ernani.
O Instituto Votorantim, por sua vez, crê que uma série de iniciativas podem ajudar a mudar a saúde democrática das cidades brasileiras, como a promoção de ações para incentivar o engajamento político dos jovens, o aumento da representatividade nas eleições, o combate às fake news e o apoio a candidaturas femininas.