Aos oito anos, a poeta e escritora paulista Hilda Hilst queria ser santa. Bem mais tarde, quando já era uma autora respeitada, mas pouco lida, começou a sua chamada “fase pornográfica” e passou a ser associada à obscenidade. De certa forma, esse é um pouco o resumo de sua obra (e de sua vida): algo entre o sagrado e o profano, porque os dois se coincidem muito mais do que se imagina.
Hilda morreu em 2004, aos 73 anos e, para muitos, mais esquecida do que deveria. A partir daí, o interesse na sua obra, para além da figura de uma senhora polêmica e obscena, passou a crescer. A Globo Livros começou a republicar os seus livros, alguns ainda sem edição que abrangesse o território brasileiro. Em 2013, lançaram o volume Fico Besta Quando me Entendem, com as entrevistas da autora, e, logo depois, Pornô Chic, reunião de suas obras eróticas. Ao mesmo tempo, o campo teatral se apropriou dos textos de Hilda, sempre com novas montagens – a pernambucana Fabiana Pirro é uma das que tem se dedicado às obras dela.
O ápice desses novos olhares para a prosa e poesia hilstiana surge agora, com a homenagem à autora na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece entre os dias 25 e 29 de julho. A escolha da autora vem, não por coincidência, quando a sua obra começou a ser reeditada pela Companhia das Letras. Ano passado, reuniu um volume com os versos, o Da Poesia. Agora, próximo à Flip, publica Da Prosa, caixa dividida em dois volumes com textos críticos de Alcir Pécora, Carola Saavedra e Daniel Galera. Além disso, saem também dois livros de poemas: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão e a coletânea De Amor Tenho Vivido.
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Outros dois títulos também aproveitam a carona da homenagem, que vai contar com mesas com nomes como Fernanda Montenegro, Jocy de Oliveira, Eliane Robert Moraes e Zeca Baleiro. 132 Crônicas: Cascos e Carícias e Outros Escritos (Nova Fronteira) reúne textos ácidos e bem-humorados da autora, e Hilda ganha também a sua primeira biografia no volume Eu e Não Outra – A Vida Intensa de Hilda Hilst (Tordesilhas), escrito por Laura Folgueira e Luisa Destri.
Tantos lançamentos são sinais do prestígio de Hilda, uma autora que reclamava de ser pouco lida e brincava com a estrutura da literatura comercial, mas que nunca abdicou de escrever nos seus próprios termos. “Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência tão grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam”, disse a autora em uma entrevista.
Até por isso, para a poeta e crítica literária Renata Pimentel, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, é difícil dizer se a obra de Hilda é mais lida hoje ou só começou a ser um pouco mais vendida. “O mercado engole seus filhos como fazia Cronos: capitaliza a escritura a pasteuriza vias de leituras prêt-à-porter, como nas feiras e nos festivais e prêmios literários. Hilda, em sendo tão demasiadamente humana e provocadora, insistia em dizer que quis ser lida e parecia vaidade querer ser reconhecida. Mas também no que dizia leio uma consciência de se saber instrumento da poesia e querer espalhar seu particular ‘evangelho’: sua via de comunicação com o sagrado. Qualquer lugar nisso que se chama um ‘panteão’ de qualquer literatura é uma bobagem”, comenta.
Segundo Renata, a leitura é algo distante do “reconhecimento crítico”. “O leitor que se pauta pela crítica dita especializada é o leitor que faz parte desse espaço mesmo já contaminado de jargões e hierarquias. Se Hilda queria fazer parte era do cânone”, brinca, explicando que o termo se une ao gosto da autora pelo sagrado. “A justiça à obra de Hilda é simplesmente ser capaz de mastigar o corpo poético que ela nos deixou e incorporá-lo em vida, em práxis”, sintetiza.
A união do profano e do sagrado, do santo e do obsceno é fundamental para entender a obra da autora paulista. “Não são polos, são a mesma via. Toda a obra de Hilda é uma procura de Deus (ela grafava assim). O corpo pra ela era a miséria do humano, era o ‘fétido e luxuoso buraco’ pelo qual o ‘menino porco’ (como a Deus se refere ela em A Obscena Senhora D., de ‘derrelição’, de abandono e de Deus) nos criou sua imagem e semelhança. Como os poetas místicos que leu (Teresa de Ávila, Juana Inés de la Cruz), o corpo para a poética de Hilda é também via de ascese: corpo de Deus, de Cristo, de comunhão com o quântico”, explica.
ANARQUIA DE GÊNEROS
Para o crítico literário Alcir Pécora, o universo da escrita hilstiana dispensa os conceitos literários tradicionais do modernismo – e é isso que faz dela uma poeta tão singular e tão difícil de compreender sem uma leitura mais profunda. Ele destaca cinco elementos cruciais da obra da autora de A Obscena Senhora D: a anarquia dos gêneros literários, o fluxo de consciência singular, o antinarrador, o esquematismo das narrativas e o obsceno.
Essa “anarquia de gêneros” é fácil de notar nas narrativas de Da Prosa. Hilda logo funde romance, conto, texto teatral, poesia, cantos bíblicos, cartas. “A literatura toda de Hilda é poesia, uma poética expandida em todas as possibilidades do que parecem diversos gêneros”, conta Renata. “E tem também esse aspecto das várias vozes e em vários idiomas. Isso aponta, em minha percepção, para a antena de Hilda para o sagrado e a loucura (anverso de quem chega ao santo; pois que fala e ninguém lhe credita entendimento); para sua captação do próprio pai, da esquizofrenia que é a linguagem e saber que poesia diz mais do que se pode até dizer. Por isso, não suscita ‘entendimento’, percepção cognitiva racional, mas capacidade de experimentar. A torre de babel de Hilda é pura lucidez.”
A imagem da torre de babel é poderosa porque Hilda, na sua forma de narrar, também mistura temporalidades, consciências e vozes (e por isso o teatro a abraça tão bem). Além disso, para Pécora, o obsceno da autora de Fluxo-Floema é mais do que o meramente pornográfico. “A forma geral dos seus textos ditos eróticos (...) enuncia um confronto entre a arte mais radical da palavra, no limite da legibilidade e quase sem possibilidade de partilha, e as expectativas dos leitores, as contas dos editores e até os ridículos próprios do autor”, escreve o crítico. Afinal, não existe uma fórmula para os textos de Hilda porque não existe uma fórmula para o mundo. Como ela mesmo disse no romance Estar Sendo. Ter Sido, de 1997: “pior teria sido ter entendido tudo”.