O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu assegurar a validade dos acordos individuais entre empregadores e trabalhadores para reduzir jornada e salário ou suspender contratos durante a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus no País. Por sete votos a três, a Corte manteve a medida nos mesmos termos da proposta do governo federal.
Os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Carmen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, além do presidente da Corte, Dias Toffoli, votaram por rejeitar o pedido de medida cautelar para suspender esse dispositivo da Medida Provisória 936. A solicitação havia sido feita pela Rede Sustentabilidade em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Só dois ministros (Edson Fachin e Rosa Weber) votaram pela necessidade de acordos coletivos, acatando o pedido do partido.
O relator da ação, ministro Ricardo Lewandowski, proferiu um voto "intermediário" prevendo a validade dos acordos Individuais, mas com possibilidade de o sindicato deflagrar negociação coletiva. O ministro Celso de Mello ainda não retornou às atividades plenárias e, por isso, não votou nesta sessão.
O julgamento ocorre neste momento diz respeito a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pela Rede Sustentabilidade e que questiona a Medida Provisória do governo que permite acordos para redução de jornada e salário ou suspensão de contrato como instrumento de enfrentamento à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.
As negociações individuais valem para os trabalhadores com carteira assinada e que recebem até R$ 3.135 ou que tenham ensino superior e ganham acima de R$ 12.202,12. Quem tem salário intermediário também pode negociar individualmente para reduzir 25% da jornada e do salário, mas depende de acordos coletivos, negociados pelos sindicatos das categorias, para alterações mais radicais no contrato.
No total do programa, a equipe econômica prevê que até 24,5 milhões de trabalhadores receberão o benefício emergencial - ou seja, serão afetados pelas reduções de jornada e salário ou suspensão de contratos. O número equivale a 73% dos vínculos com carteira assinada no País.
A medida permite redução de jornada em 25%, 50% ou 70%, com um corte proporcional no salário, por até três meses. Também é possível suspender o contrato por até dois meses. Em todos os casos, o governo pagará uma parte do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito.
Hoje a parcela do seguro vai de R$ 1.045 a R$ 1.813,03. Na redução de jornada, o governo paga o mesmo porcentual do corte (25%, 50% ou 70%) calculado sobre o seguro. Na suspensão de contrato, o governo paga 70% do seguro, em caso de empregados de grandes empresas, ou 100%, em caso de trabalhadores de pequenas e médias companhias.
Na soma da parcela salarial e da parte paga pelo governo, nenhum trabalhador receberá menos que um salário mínimo.
Moraes, Barroso, Fux, Cármen, Gilmar, Marco Aurélio e Toffoli votaram para aplicar MP da forma como governo editou. O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a votar pela aplicação integral da medida provisória do governo, divergindo de Lewandowski. O voto dele foi seguido pelos colegas Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e pelo presidente do STF, Dias Toffoli.
Para Moraes, a possibilidade de o sindicato alterar acordo firmado individualmente "geraria enorme insegurança jurídica e reduziria eficácia da medida emergencial". "Se colocarmos necessidade de referendo do sindicato como condição resolutiva, vamos ter três possibilidades, sendo que só uma a meu ver, com todo o respeito às posições em contrário, não afetará segurança jurídica e boa fé de empregados e empregadores, que é o caso de o sindicato concordar com o que foi feito", justificou o ministro.
Na visão de Moraes, o artigo da Constituição que prevê exceção à irredutibilidade dos salários apenas em caso de negociação coletiva, com mediação de sindicatos, não se aplica no caso da MP do governo. "Não há conflito coletivo", argumentou.
"Aqui não existe conflito, aqui existe a necessidade de uma convergência pela sobrevivência da empresa, do empregador e do empregado, com auxílio do governo. Sem o auxílio do governo e sem essa convergência de interesses, as empresas não sobreviverão a esse período de pandemia. Teremos um desemprego em massa", alertou Moraes.
O ministro chegou a dizer que já há cálculos apontando que o Brasil, que tinha cerca de 12,5 milhões de desempregados antes da crise, poderia chegar a 25 milhões ou até 30 milhões de desempregados após a crise, algo que seria "inadmissível" e geraria um "conflito social gigantesco".
"Às vezes é importante ceder para sobreviver. Às vezes é importante interpretar mais favoravelmente para sobreviver", acrescentou.
Para Barroso, diante da assimetria e da desigualdade intrínseca entre empregador e empregado, a negociação coletiva "é sim uma alternativa importante" e até "ideal e desejável". No entanto, o ministro argumentou que a grande heterogeneidade dos sindicatos e suas múltiplas deficiências exibem uma incapacidade em realizar a tempo a chancela de milhões de acordos de suspensão ou redução de jornada. De acordo com o ministro, é possível extraordinariamente afastar a exigência de negociação coletiva, em situação emergencial e transitória.
"Portanto, eu constato aqui, numa impossibilidade material, numa impossibilidade prática que salta aos olhos, que não há uma estrutura sindical no Brasil capaz de atender a tempo e à hora às demandas de urgência de suspensão de contrato e redução de jornada", disse Barroso. "Se se der esse protagonismo aos sindicatos, inexoravelmente as empresas vão optar mais pelo caminho mais fácil, que é a demissão, do que o caminho mais tormentoso de ficar na dependência da intervenção dos sindicatos nesse contexto", acrescentou.
Barroso disse que a própria MP "cuidou de estabelecer colchões de proteção social para coibir eventuais abusos" ao prever estabilidade provisória e preservação da hora trabalhada.
"A realidade impõe limites ao direito. A Constituição prevê sim a negociação coletiva em caso de redução de jornada, de redução de salário e suspensão de contrato. Mas a Constituição também prevê o direito ao trabalho e uma série de garantias à proteção do emprego. Se a negociação coletiva for materialmente impossível para impedir demissão em massa, a melhor interpretação é a que impede a demissão em massa, com a flexibilização nas pontas dessa exigência de negociação coletiva", defendeu Barroso.
Fux argumentou que o direito "não está apartado da realidade" e a "realidade prática" mostra hoje uma convergência de interesses entre empregadores e trabalhadores. "Entendo que essa liberdade e essa autonomia, à luz do realismo jurídico, não pode ser abandonada. Esse realismo jurídico deve impregnar nossa interpretação dos dispositivos constitucionais", disse o ministro. "O sindicato não pode fazer nada, absolutamente nada que supere a vontade entre as partes." Ele alertou ainda que o País vive uma "tempestade perfeita" com a pandemia e defendeu a necessidade de manter a validade da medida do governo.
A ministra Cármen Lúcia foi em direção semelhante e disse que o momento é "grave, sofrido, perturbador" e causa "profundas rachaduras nas estruturas que nos permitiram supor que éramos seguros". Ela destacou que o quadro de emergência temporária se conjuga ao fato de o programa proposto pelo governo também ser provisório e lembrou que a MP ainda está sujeito ao crivo político do Congresso Nacional.
"A MP veio trazer uma alternativa que é multidisciplinar para garantir-se o emprego, garantir-se o trabalho. É certo que não é o ideal, mas não estamos falando aqui do ideal. Estamos falando de nos apegar ao princípio constitucional que assegure pelo menos a valorização do trabalho e do trabalhador, que se ficar sem o emprego sequer poderá ficar em situação de distanciamento social, porque ele vai sair em busca de outros empregos", afirmou Cármen Lúcia.
Para a ministra, o ato jurídico do acordo individual prescinde de necessária atuação do sindicato neste caso. A alternativa, segundo ela, "seria o não salário, seria o desemprego".
Fachin e Rosa votam contra possibilidade de acordo individual entre patrão e empregado
Os ministro Edson Fachin abriu uma terceira via no julgamento sobre a Medida Provisória que permite a redução de jornada e salários ou suspensão de contratos. Fachin acolheu integralmente o pedido da Rede Sustentabilidade a fim de afastar a possibilidade de acordos individuais para tratar dessas medidas.
Fachin, terceiro a votar no julgamento da MP do governo, argumentou que a participação sindical tem garantia expressa na Constituição de 1988 e não há espaço para que uma lei ordinária suprima isso, ainda que em tempos de crise ou calamidade pública
"A exigência de que a flexibilização de direitos fundamentais sociais, tais como salários, jornadas ou a continuidade do próprio contrato de trabalho, seja feita sob o olhar protetivo do respectivo sindicato da categoria, tem a função de resguardar o empregado", disse o ministro em seu voto. Sem essa observação, segundo Fachin, nasce uma "possibilidade real de negar-se direitos fundamentais dos trabalhadores, o que não se pode admitir".
A ministra Rosa Weber acompanhou o ministro Fachin. Para ela, afastar a participação sindical das negociações, mesmo num momento de calamidade pública, pode gerar um "recrudescimento do conflito social". Segundo a ministra, a multiplicidade de acordos individuais pode levar a um conflito coletivo e até fomentar o conflito entre o sindicato profissional e o empregado, que agiria "coagido e insuflado pelo medo e pela insegurança".
"O período de crise reclama o resguardo da solidez das normas democráticas", disse Rosa, referindo-se ao dispositivo da Constituição que prevê as negociações coletivas para redução de salários.
Após o voto de Rosa, Lewandowski inclusive fez uma intervenção para dizer que "não teria dificuldade em acompanhar" a ala contrária à possibilidade do acordo individual, mas ponderou que várias empresas e trabalhadores já estão estabelecendo negociações individuais. "Neste momento, considerando que o processo de acordos individuais já estava em andamento, cabia a mim ser mais contido", justificou o relator.