Conteúdos falsos e enganosos sobre vacinação estão circulando em contas verificadas no Youtube, que lucam em cima da visualização deles para vender produtos de “saúde alternativa”. Um estudo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, publicado nesta segunda-feira (26) na revista “Frontiers in Communication” e disponível na Agência Bori, mostra que a circulação de conteúdos antivacinação permanece acontecendo na plataforma de vídeos, geralmente atrelada a campanhas comerciais de vendas de produtos.
Usando ferramentas de coletas de dados no Youtube, os pesquisadores localizaram 158 vídeos sobre vacinas com mais de 10 mil visualizações, interações e conexão com algum outro vídeo da rede. As coletas do material foram realizadas entre fevereiro e março de 2020, ou seja, num período anterior às discussões em torno da vacina de Covid-19. “As pessoas dão muito foco para os conteúdos no Whatsapp e no Facebook. Então, decidimos saber se a desinformação sobre vacina estava circulando também no Youtube”, explica a doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp Dayane Machado.
Os pesquisadores analisaram o conteúdo dos 158 vídeos sobre vacina com muitas visualizações e, dentre eles, identificaram 23 com declarações falsas ou enganosas. Em uma segunda etapa, o grupo entrou nos canais de origem desses 23 conteúdos para analisar os demais vídeos postados, encontrando outros 29 que seguiam a mesma linha de disseminar desinformação.
As principais desinformações encontradas coincidem com as mais populares entre as comunidades de oposição a imunizações. Afirmações de que as vacinas contêm ingredientes perigosos estavam presentes em mais 53% da amostra. A defesa da liberdade de escolha, em 48%. A promoção de serviços de saúde alternativa, em 42%. Também foram encontrados boatos de que as vacinas causam doenças.
“Percebemos nos vídeos em português algo que outros pesquisadores já haviam identificado em conteúdos em inglês, uma tentativa de reposicionar a marca antivacinação. Falar que é antivacinação não pega tão bem, então o discurso diz apenas para você ter cuidado, para ter o direito de escolher. Ao mesmo tempo, incentiva as pessoas a fazerem pesquisas independentes”, detalha a pesquisadora Dayane Machado.
Os estudiosos também localizaram anúncios de 39 marcas em 13 vídeos analisados. Entre elas, Mobil, Kia, Fiat, Philips, Spotify, Eucerin (Beiersdorf) e Buscopan (Boehringes Ingelheim) e até anúncios dos governos da Índia e do Japão. Os vídeos analisados têm estratégias de lucro variadas, segundo comenta a pesquisadora, indo além da monetização de conteúdo proposta pelo Youtube. “Os canais não necessariamente falam só de vacina e não divulgam só conteúdos falsos. Às vezes, são pessoas que se promovem como da saúde natural, que estão em missão de aliviar dor e sofrimento. Falar mal de vacina é mais uma estratégia de venda de produtos alternativos”, alerta Dayane.
Segundo ela, o vídeo pode acabar atraindo aquelas pessoas que estão no meio termo entre os que são totalmente antivacinação e os que acreditam e tomam todas as vacinas. “Aqueles que tomam as imunizações, mas desconfiam de uma ou outra”, exemplifica.
O estudo também mostra que boa parte das políticas de moderação do Youtube são direcionadas a conteúdos de língua inglesa – resultado da repercussão de estudos científicos sobre o tema e da pressão social direcionada às empresas anunciantes. “Existe uma falta de atenção sobre a moderação de conteúdo e o cumprimento de políticas de uso das plataformas em relação a outros idiomas que não sejam o inglês”, aponta Dayane. Para ela, o estudo pode contribuir para alterar políticas de uso das plataformas digitais e para mudanças na expansão da infraestrutura de moderação de conteúdos em outros países.
A pesquisadora também espera que o estudo fortaleça a discussão sobre o mercado de terapias alternativas de saúde no Brasil. “A associação entre a desinformação sobre vacinas e a promoção de produtos e terapias de saúde alternativa não é uma novidade para esse campo de estudo”, acrescenta.
A chegada da covid-19 trouxe o que a Organização Mundial da Saúde (OMS), em abril, classificou como desinfodemia, “uma pandemia paralela de desinformação que impacta diretamente as vidas e os meios de subsistência em todo o mundo”. Por isso, os pesquisadores da Unicamp e Universidade da Califórnia agora estão se debruçando sobre os conteúdos publicados desde março, para identificar a circulação de desinformação sobre vacina no Youtube durante a pandemia.
A hipótese deles é que nem a chegada de uma doença nova, para a qual não se têm defesa, foi suficiente para diminuir as conspirações sobre vacinação. “O pensamento conspiratório se adapta a novos eventos. A pandemia reforçou ideias de que alguém precisa ser responsabilizado. A conspiração vai se adaptando e uma versão nem precisa corroborar a outra, só ir contra algum órgão oficial”, explica Dayane Machado.
Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) mostrou que, com o avanço de testes com vacinas para a covid-19, a desinformação sobre o tema cresceu no Brasil. De acordo com o levantamento da União Pró-Vacina (UPVacina), um grupo de instituições ligadas à USP Ribeirão Preto, houve um aumento de 383% em postagens com conteúdo falso ou distorcido sobre a vacina contra a covid-19. O grupo mostrou que, em dois meses, a desinformação sobre o tema quase quintuplicou. Em maio, foram 18 publicações. Em julho, 87.
Das cerca de 200 propostas de vacinas em teste para o novo vírus elencadas pela OMS, 44 chegaram à fase de testes com humanos e, dessas, 10 projetos atingiram a fase três de estudos, em que voluntários são recrutados para comprovar a eficácia. No Brasil, estão em testes as vacinas dos laboratórios AstraZeneca/Oxford, Sinovac, Janssen e Pfizer/Biontech/Fosun Pharma. Dados sobre elas podem ser obtidos no site da Anvisa. A OMS mantém a página Vaccine Safety Net (VSN), rede internacional de portais que oferecem informações confiáveis sobre vacinação, onde está incluída a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Em 2019, a Avaaz e a SBIm realizaram o estudo “As Fake News estão nos deixando doentes?”, para investigar a associação entre a desinformação e a queda nas coberturas vacinais no Brasil. A pesquisa revelou que sete a cada dez brasileiros acreditam em alguma informação falsa relacionada à vacinação. A circulação de mentiras e boatos sobre o tema vem sendo considerada um dos motivos mais fortes para a redução da cobertura vacinal no país.
Em 2020, apesar de os dados não estarem consolidados, vacinas oferecidas para crianças com até 1 ano, como a febre amarela, hepatite B para bebês de até 30 dias e a segunda dose da tríplice viral, registraram índices de vacinação de 50,11%, 54,27% e 55,7%. Os números são considerados piores que os de 2019, quando o país não alcançou pela primeira vez nenhuma meta mínima de vacinação, que varia de 90% a 95% dependendo do imunizante. A SBIm lançou uma cartilha sobre o tema, para orientar pais e cuidadores.
Desde o começo da pandemia, as plataformas de redes sociais estão sendo pressionadas para combater de forma mais firme a desinformação. Recentemente, o TSE firmou parceria com várias delas para realização de medidas no período eleitoral. O Youtube tem uma página onde explica as ações que realiza. “Tratamos a desinformação em nossa plataforma com diversas ferramentas: removemos conteúdo que viola nossas políticas, destacamos fontes confiáveis de notícias e informações, e reduzimos recomendações de conteúdo duvidoso e desinformação nociva”, diz o canal.
Entre abril e junho de 2020, 11,4 milhões de conteúdos foram retirados do ar, no Youtube, sendo 980 mil deles do Brasil. Em todo o primeiro semestre, foram 1,4 milhão de remoções no país, que ocupa a terceira colocação do ranking de remoções de vídeos. Na última quinta-feira (22), o Google anunciou a criação de uma página específica sobre combate à desinformação na plataforma Youtube.
Na página, a ferramenta diz que reduziu as recomendações de conteúdos duvidosos que possam desinformar o usuário de maneira maliciosa, como os vídeos que promovem curas milagrosas. A pesquisadora da Unicamp Dayane Machado afirma que é preciso estar sempre alerta para não cair nesse tipo de conteúdo. “Se você ficou indignado, angustiado, com algum sentimento forte, analise duas vezes aquela mensagem. Use as agências de checagem ou cheque a informação”, recomenda.
Buscar a fonte original de uma afirmação é um passo importante ao checar informações. Se quiser verificar a quantidade de características de desinformação em boatos sobre política, saúde e outros temas de relevância para a sociedade, você pode usar o Confere.ai, a primeira ferramenta de checagem automática do Nordeste. Basta copiar e colar um link e jogar no campo de busca da plataforma, que ela te responderá com um medidor de desinformação. Assim, você evitará repassar mentiras por aí.