A mudança do tom negacionista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em relação à pandemia surpreendeu até mesmo o médico sanitarista, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto. Em entrevista ao Passando a Limpo, da Rádio Jornal, na manhã desta quinta-feira (11), o especialista comentou sobre a nova postura do chefe de estado, que prometeu mais de 400 milhões de doses de vacinas para imunizar a população brasileira até o fim de 2021, e sobre as medidas tomadas pelos governos federal e estaduais no momento mais duro da covid-19 no Brasil, que emplaca novos recordes de mortes a cada dia.
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Rádio Jornal: A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia há um ano. Esse foi o pior ano da sua vida? O mais tenso? Convivendo com o coronavírus?
Gonzalo Vecina Neto: Sem dúvidas. Esse foi um ano muito difícil. Primeiro que apesar de tudo que eu já li e estudei, não tinha percepção de que ia durar tanto tempo, e que seria uma desgraça muito maior do que a da gripe espanhola, e que chegaríamos neste momento com a pandemia matando dessa forma, em uma curva ascendente terrível. Todo dia tive que me superar para levantar e voltar a fazer as coisas, e voltar a pensar como iríamos enfrentar a desgraça que estamos vivendo. O pior de tudo é que sem governo, sozinhos. Sou funcionário público, passei a vida toda trabalhando com o estado e para a sociedade, e de repente me vejo órfão, sem o auxílio do estado.
Rádio Jornal: Teria sido diferente se a OMS tivesse feito o alarde de que vivíamos em uma pandemia antes? E mais, vivemos hoje o pior momento da pandemia?
Gonzalo: Você errar ao dizer, "estamos vivendo uma tragédia", e quando vê ela não é isso tudo, é ruim porque impacta a vida das pessoas. Prefiro receber uma notícia ruim atrasada, do que antes. Não faríamos nada que não fizemos. Tomar medidas mais duras é sempre mais difícil. Hoje estamos vivendo os piores momentos dessa tragédia. Hoje estamos com 2.700 mortos por dia; infelizmente vamos passar os 3 mil mortos por dia. Porque começamos a parar o Brasil ainda não tem 14 dias.
A cidade de Araraquara (SP) fez um lockdown inclusive proibindo compra em supermercados, que só funcionou por delivery. Ontem, ou anteontem, começaram a cair o número de casos, não o de óbitos, porque os hospitais estão cheios. Então vamos piorar infelizmente ainda mais alguns dias. Se esse isolamento social for efetivo, se as pessoas deixarem de ir para as ruas e deixarem de se encontrar, se passarem a usar máscaras, vamos reduzir os casos e depois as mortes. O que fizemos há 14 dias, tem consequência no número de casos hoje, as mortes ficam mais para frente, 5 ou 6 dias depois. Infelizmente ainda temos dias muito ruins pela frente.
Ontem, aparentemente, ganhamos um aliado, que chama-se Bolsonaro. Parece que ele finalmente entendeu que tem que olhar para a pandemia de um jeito diferente do que ele havia olhado, ainda bem, antes tarde do que nunca. Tem que usar máscara e falar em isolamento social.
Rádio Jornal: O governo federal sempre coloca a narrativa de que o STF o proibiu de atuar na pandemia, quando, na verdade, além de reconhecer a autonomia de estados e municípios, o Supremo não retirou a responsabilidade do governo federal. Nesse âmbito, tivemos uma reunião de 24 governadores, que assinaram um pacto nacional em defesa da vida e da saúde. Esse texto pede a criação de um comitê gestor para o enfrentamento da doença. O que é que essa comissão pode fazer diante da omissão do estado?
Gonzalo: O Sistema Único de Saúde (SUS) é de gestão tripartite: o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de saúde e as municipais. O ministério é muito importante para o SUS; 50% dos recursos vêm dele, 25% dos estados e 25% dos municípios. O ministério é responsável pelo financiamento da assistência hospitalar, também nesse momento em que os hospitais sofrem pressão. Chegamos a ter mais de 15 mil leitos a mais financiados pelo ministério, a maioria já foi desativada, estamos com uns 3 mil a mais, isso é parte da explicação desse momento em que vivemos sem vagas nas UTIs. O ministério não entrou na discussão de como combater a doença. Tentou começar a comprar a vacina em fevereiro, e agora aparentemente está fechando outros negócios. Essa pandemia não tem jeito, ou tem vacina ou tem isolamento social. O Ministério da Saúde não participou de nenhuma das duas ações.
Os governos estaduais estão ralando para isso o tempo todo. Eles podem comprar vacina? Agora tem até uma lei que permite. Mas pensem bem, se Pernambuco compra vacina, e Paraíba e Sergipe não compram, tá certo isso? Tem alguma lógica? Não tem. Tem lógica o Brasil ter vacina. A coordenação que os governadores estão propondo que aconteça, é uma tentativa de substituir uma coisa que não existe, que é o governo federal. Não dá para ser uma ação de estado a estado, quem tem que coordenar a ação, que é o ministério, não está fazendo. Tem uma chance da gente conseguir uma articulação que melhore a resposta do estado, que é órgão que administra a sociedade. Temos que conseguir algum tipo de governo para melhorar a situação da assistência à saúde do nosso povo. Eu dou parabéns aos governadores, embora eu considere que vá ser muito difícil, porque já é difícil governar um estado, imagine tentar criar um consenso entre 27.
Como o governo federal parece ter começado a acordar, quem sabe começaremos a ter a participação dele para tentar reduzir o número de mortes através de isolamento social, porque não tem outro jeito, e comprar a vacina a mais do que a Fiocruz e o Butatan graças a Deus já conseguiram comprar. Se Butantan e Fiocruz não fizessem as vacinas, o pouquinho que nós tivemos não teríamos conseguido. A partir de abril, os dois vão começar a produção em seu máximo, com 40 milhões de doses por mês, mas isso será insuficiente. Nessa velocidade, terminaremos de vacinar a população em janeiro de 2022. Trazer mais vacinas já é fundamental, mas não tem vacina para trazer já porque o mundo inteiro quer. Se a gente comprar hoje, conseguimos com sorte no segundo semestre, mas pelo menos trazemos.
Rádio Jornal: Em 1999, no ato de criação da Anvisa, o então presidente Fernando Henrique Cardoso disse que era fundamental que tivéssemos uma agência reguladora que fosse os olhos do cidadão durante o enfrentamento de pandemias e nas questões sanitárias. Na sua avaliação, faltou agilidade da Anvisa? Como o senhor avalia a ação dela na pandemia?
Gonzalo: Cada macaco no seu galho. Temos um galho chamado vigilância sanitária, que tem a função de garantir que tudo o que a gente consome que pode provocar danos na saúde, seja entregue de forma segura e com qualidade. Essa é a função da Anvisa. Tudo o que consumimos é o que a Anvisa aprova que pode ser comercializado. Além disso, a Anvisa ainda dá pitacos na saúde do trabalhador e do meio ambiente. Acho que a Anvisa se saiu perfeitamente. O corpo de servidores mostrou o que é ser uma agência de estado independente, e não se dobrou a nenhuma solicitação esdrúxula do atual governo. Aprovou a vacina da chinesa Sinovac quando o presidente disse: “não compre esta vacina”. A Anvisa respondeu a sociedade brasileira à altura.
Tem outro galho chamado vigilância epidemiológica, que é o que acompanha o surgimento de doenças novas e explica como ocorrem, tentar fazer o sequenciamento do vírus. O Brasil não tem isso hoje. Os Estados Unidos têm o Centro de Controle de Doenças de Atlanta. Na Europa ,todos os países têm centro de controle de doenças, a China e o Japão também. Eles vigiam o ambiente e sempre que aparece uma doença que ninguém consegue explicar, estuda, vê se tem bicho envolvido com isso, sequência o animal, o tempo todo. Ao mesmo tempo, acompanha a saúde da população, não espera acontecer alguma coisa. Acompanha grandes massas populacionais e vê o que está acontecendo na população. Vê como estamos respondendo à obesidade, ao câncer, doenças cardiovasculares e infecciosas, enfim, tudo.
O terceiro braço é a formação das pessoas que estudam o aparecimento de doenças, que são os epidemiologistas, que o Brasil tem poucos. Essa é uma das fraquezas do SUS, precisamos dar conta disso. Para isso precisamos que o governo desperte para a necessidade de criar isso. Por enquanto estamos criando o instituto Todos pela Saúde, apoiado pelo Banco Itaú, que vai começar a fazer isso de maneira privada. Mas essa é uma tarefa do estado, porque você precisa de políticas sanitárias quando chega o momento de intervir em uma crise sanitária, que tem um agente infeccioso envolvido.
Rádio Jornal: A Folha de S. Paulo veio hoje com a manchete: Lockdown ainda é mais eficiente para queda de covid do que a vacina. Chega a ser assim?
Gonzalo: As vacinas que estamos trabalhando são de duas doses, e o efeito delas é de 20 a 25 dias após a segunda dose. No caso da AstraZeneca Oxford, você toma a primeira dose e só 90 dias depois toma a segunda, e só 20 dias depois você está imune. Nesse sentido, 14 dias após um lockdown você tem a queda do número de casos. A da Sinovac, por exemplo, você toma a segunda dose 20 dias depois, e só 20 dias depois estará imune. Então a queda nos casos vai acontecer bem depois. Em Israel, na Escócia e Reino Unido finalmente está tendo redução no número de casos, porque vacinaram mais da metade da população, então começa a ocorrer a queda. Por causa disso, o lockdown, em uma curva ascendente, é mais efetivo do que a vacina.
Rádio Jornal: Uma reclamação que temos ouvido é de pessoas dizendo que, nessa altura do campeonato, já estaríamos tomando a vacina da H1N1, mas não estamos vendo movimentação para isso parece que em canto nenhum. Existe alguma razão para isso?
Gonzalo: Oitenta milhões de doses da vacina contra o H1N1 foram produzidas no Butantan. A vacina da gripe tem quatro sorotipos, para quatro tipos de vírus. No ano passado, tivemos a vacina em março, abril e maio, que é o momento de vacinar contra a gripe, um pouco antes da chegada do inverno, que é quando o vírus se dissemina mais rapidamente. A vacina foi produzida e está esperando no armazém do Butantan esperando o Ministério falar: “mande para o nosso armazém para a gente começar a vacinação no nosso país”. Quem dá a ordem de vacinação é o Ministério da Saúde. Não existe razão para o ministério ainda não ter feito isso. Já existe um consenso de que a vacina da gripe deve estar distanciada em duas semanas de qualquer vacina da covid. Só tem que organizar, que é uma das funções da gestão, e talvez seja a dificuldade do governo federal. Sem dúvidas, não vai ser fácil administrar as duas vacinas da covid-19 e a da gripe, tendo que respeitar esse prazo, porque é melhor espaçar o tempo, já que não sabemos quais são as consequências de tomar as duas concomitantemente.