Um negro tem 2,6 vezes mais risco de ser assassinado no Brasil do que as outras pessoas. Na maior parte dos casos de homicídio, a vítima também é jovem. Os dados constam do Atlas da Violência 2021, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), divulgado nesta terça-feira (31).
A análise foi feita com base em registros reunidos pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Por ter metodologia e abrangência nacional, o banco de dados é historicamente considerado a principal fonte para medir indicadores de violência no País e avaliar o perfil das vítimas. Como a pesquisa retroage dois anos, os resultados trazidos nesta edição do Atlas são referentes aos dados de 2019. A discrepância entre o risco de morte de negros e brancos vem em um patamar elevado ao menos desde 2008, segundo os dados. Em 2018, por exemplo, o indicador estava em 2,7.
Naquele ano, o SIM apontou 45.503 assassinatos praticados no Brasil, o equivalente a uma taxa geral de 21,7 mortes por 100 mil habitantes. O índice representa um recuo de 21,4% em relação às 57.956 ocorrências do ano anterior. Pesquisadores alertam, no entanto, sobre a queda na qualidade desse banco de dados a partir de 2018, quando começou a haver aumento importante de mortes violentas registradas com "causa indeterminada".
Na prática, isso pode reduzir artificialmente o número de homicídios e prejudicar comparações com a série histórica. Foi a primeira vez, por exemplo, que o índice da Saúde ficou abaixo do total de casos registrados pelas polícias -- a outra forma de medir homicídios. Em 2019, as delegacias notificaram 47.742 mortes violentas.
Ainda assim, os assassinatos continuam como a principal causa de mortalidade entre jovens, sendo responsável por 39 a cada 100 óbitos notificados. Ao todo, 23.327 vítimas da violência tinham entre 15 e 29 anos, ou 51,3% dos registros, o que representa uma média de 64 casos por dia, de acordo com o balanço.
"Nos últimos 11 anos, 333 mil adolescentes e jovens foram assassinados, é uma geração inteira que a gente está jogando fora. Além do custo emocional, da tragédia humana que isso representa, há o impacto econômico para o País", analisa Samira Bueno, uma das coordenadoras do estudo.
O Atlas indica, ainda, que 75,7% das vítimas de homicídio em 2019 eram negras (a soma de pretos e pardos, de acordo com a definição do IBGE). Para medir a exposição do grupo à violência, os pesquisadores calculam a taxa de casos em relação à população específica e comparam os resultados. Dessa forma, o cálculo desfaz possíveis distorções provocadas por diferenças demográficas.
Segundo o levantamento, a taxa de assassinatos entre negros chegou a 29,2 para cada 100 mil habitantes em 2019, índice menor se comparado a anos anteriores, mas acima da média nacional. Já para brancos, indígenas e amarelos, os "não negros", o indicador ficou em 11,2 casos por 100 mil.
A presença do que os pesquisadores chamam de "viés racial entre as mortes violentas" é um fenômeno observado pelo menos desde a década de 1980 no País. Foi nesse período que o Brasil começou a vivenciar aumento das taxas de homicídios. Em geral, a tendência de assassinatos passou a se inverter a partir dos anos 2000, com o envelhecimento da população, a introdução de políticas públicas em alguns Estados e o Estatuto do Desarmamento.
Os impactos do recuo global, entretanto, reflete menos entre negros. Entre 2009 e 2019, as taxas de homicídio caíram 20,3% no Brasil, mas para pretos e pardos a queda na última década foi de 15,5%. Enquanto isso, os assassinatos diminuíram 30,5% entre brancos, amarelos e indígenas. "Embora a violência letal tenha um arrefecimento, fica claro que o benefício se traduz apenas para um parcela da população", afirma Samira.
O comportamento da violência também tem resultados distintos nos Estados. Ao longo da última década, 11 das 27 unidades federativas estiveram na contramão nacional e viram a taxa de homicídios de negros subir - todas das regiões Norte e Nordeste. No Acre (de 18,7 para 40) e no Rio Grande do Norte (de 27,7 para 55,6), os índices mais do que dobraram. Já Distrito Federal (-59,3%), São Paulo (-53,1%) e Espírito Santo (-46,7%) tiveram as maiores quedas.
O estudo usa, ainda, o exemplo de Alagoas para demonstrar os impactos da diferença racial na letalidade violenta. "Apesar de pretos e pardos representarem 73% da população, eles são 99,2% das vítimas de homicídio", descreve a coordenadora do Atlas. "Isso deixa mais evidente a existência de dois Brasil."
Em número absolutos, o País testemunhou aumento de 1,6% dos homicídios entre negros de 2009 a 2019, passando de 33.929 vítimas para 34.446. Por outro lado, para os não negros houve redução de 33%, de 15.249 mortos para 10.217 na década.
Entre os fatores, analistas ligam o mau resultado a fatores socioeconômicos e à ausência de políticas específicas voltadas para essa parcela da população. "É preciso ter clareza de quem são as maiores vítimas para traçar estratégias de prevenção à violência", afirma Samira.
Piora na qualidade dos dados preocupa
Também preocupa os pesquisadores o crescimento de ocorrências notificadas no SIM como "morte violenta por causa indeterminada" (MVCI), observado em 2018 e 2019. Essa nomenclatura é usada para mortes com sinais de violência em que o Estado diz não saber se é um homicídio, suicídio ou acidente. Foram 16.648 registros assim em 2019, ou 69,9% a mais comparado aos 9.799 casos de 2017
Com o boom, a proporção de registros que não informam a causa da morte em relação aos homicídios saltou de 6,2% para 11,7% no período. Segundo os cientistas, esse comportamento estatístico pode causar distorções sobre a realidade da violência no Brasil, ocultar casos de homicídio e prejudicar a análise de cenários.
Um estudo anterior estima que 73,9% de mortes informadas sem a causa no sistema, na verdade, correspondem a assassinatos no Brasil. "Tomando essa estimativa como referência (...), haveria cerca de 5.338 homicídios a mais registrados em 2019", afirma a pesquisa.
De acordo com o Atlas, o problema é mais acentuado em alguns Estados. "Merecem destaque os casos de São Paulo e do Rio de Janeiro, em que as taxas de MVCI (9,0 e 28,3 respectivamente) superam as de homicídios (7,3 e 20,3)", descreve o Atlas. "No Rio de Janeiro, os dados de homicídios do SIM são 40,6% menores que os registros de mortes violentas intencionais dos órgãos de segurança pública, e em São Paulo, 17,5%."