O demógrafo José Eustáquio Alves costuma brincar que quando se olha apenas para um momento da história, está se tirando um retrato. E quando se observa a longo prazo, está se fazendo um filme.
O Bicentenário da Independência do Brasil, comemorado na quarta-feira (7), estimulou o estudioso a escrever um livro, com perspectiva de filme, acompanhando os dois pares de séculos depois que o País tornou-se livre de Portugal, no dia 7 de setembro de 1822.
Intitulado “Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e Cenário para o século XXI”, o livro foi escrito em parceria com o economista Francisco Galiza e editado pela Escola de Negócios e Seguros (ENS).
O demógrafo lembra que antes da internet era mais difícil fazer o levantamento de dados, mas com avanço da web foram surgindo bases estatísticas e facilitando as pesquisas.
Com 173 páginas e versão digital gratuita, a publicação traz um panorama da vida nacional e da economia no Bicentenário da Independência.
Na introdução, os autores utilizam uma frase de Millôr Fernandes, que resume a 'independência incompleta' da nação: "o Brasil é o país do futuro, com um enorme passado pela frente".
Esse passado que persiste é a desigualdade, ancorada nos longos anos de escravidão, em um país que carrega a vergonha de ter sido o último do mundo a libertar os escravizados.
O trabalho escravo contribuiu para atrasar o desenvolvimento econômico e social do Brasil e para deixar o País pobre, com uma renda per capita menor do que o seu potencial.
"O trabalho compulsório e sem recompensas individuais, além de ser a violação de um direito humano, por definição, é menos produtivo e não contribui para a geração de um mercado consumidor dinâmico", diz Alves.
Quando o Brasil aboliu a escravatura, em 1888, e passou a ter um mercado de trabalho assalariado, faltava mão de obra qualificada para assumir as atividades produtivas.
"A escravidão foi uma instituição espúria, violenta e cruel que se manteve ativa durante mais de 300 anos, responsável pela escravização de milhões de indígenas e africanos, além de inviabilizar e retardar a possibilidade de um ambiente de maior justiça no desenvolvimento econômico e social do país. O Brasil recebeu cerca de 5 milhões de cativos africanos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América ao longo de três séculos e meio. Como resultado, o país tem hoje a maior população negra do planeta, com exceção apenas da Nigéria", calcula o demógrafo.
Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de metade da população nacional é de negros e pardos, com taxa de 56,1%. No Nordeste, esta participação sobe para 77,5% (mais de dois terços do total) e em Pernambuco é de 67,8%.
A escravidão deixou um rastro de desigualdade que se perpetua por 200 anos. A volta do Brasil ao Mapa da Fome da ONU, em 2021, reflete esse legado. O racismo e a falta de oportunidade deixou a população negra em uma condição de maior vulnerabilidade econômica e social.
Inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostra que em 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas as pessoas convivem com restrição de alimentos. Já a situação mais severa da fome saltou de 10,4% para 18,1% entre 2021 e 2022 nos lares chefiados por negros e pardos. No caso dos brancos, essa parcela é de 10,6%.