Rua Bispo Coutinho. Você pode até nem associar o nome ao lugar, de imediato, mas essa rua é famosa e tem história para contar. Aliás, muita. Considerada a primeira via pública de Olinda a Bispo Coutinho fica na Sé, liga a Igreja da Graça à Igreja da Misericórdia, e acompanha a evolução da Cidade Alta desde 1535.
“Ela é testemunha da passagem do tempo em Olinda”, afirma Aneide Santana, pesquisadora do Arquivo Público Municipal Antonino Guimarães. A Bispo Coutinho, diz a historiadora, nasceu como Rua Nova. E só ganhou o atual nome mais tarde, em homenagem ao religioso José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742-1821), nomeado bispo de Olinda em 1794.
De Duarte Coelho – o primeiro donatário da Capitania de Pernambuco – aos foliões do Carnaval, a Bispo Coutinho vem colecionando pisadas há 481 anos, de moradores e visitantes. “Há quatro séculos que os pés de outras gerações amaciam estes caminhos para você”, como bem definiu o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) na publicação Olinda: 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira.
“É a rua que te remete ao olhar inicial sobre a cidade, com a primeira leva de colonizadores”, observa Aneide. Da Bispo Coutinho, no Alto da Sé, se via o istmo que no passado ligava Olinda ao Recife, o Porto do Recife e o crescimento da vila que se tornaria a capital de Pernambuco.
Mas, no século 16, a população não mirava só a paisagem. Moradores da Rua Nova bisbilhotavam a casa do vizinho para saber se havia entre eles judeus disfarçados de católicos. Antônia Bezerra fez isso para confirmar que Inês Fernandes, cristã-nova, não trabalhava aos sábados, hábito característico da comunidade judaica, diz Aneide.
Ao tribunal do Santo Ofício, em 12 de novembro de 1593, ela relatou os costumes da casa de Baltazar Leitão e Inês Fernandes. A delatora conta que espiava a família pela janela e via Inês, aos sábados, sempre deitada numa rede, lendo livros. Mas nos outros dias da semana a mulher trabalhava, seja cozendo, lavrando, fazendo trancinhas ou outros serviços numa almofada. O depoimento está publicado no livro Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595.
Na mesma rua em que a vizinha foi denunciada à Santa Inquisição morreu o Capitão André Pereira Temudo (sim, o homem que batiza conhecido viaduto da área central do Recife), defendendo Pernambuco da invasão holandesa em 1630, no século 17. Uma placa no muro da Igreja da Misericórdia indica que o Capitão Temudo faleceu no adro do templo católico.
A Bispo Coutinho é também a rua da lenda de Macobeba, lembra o pesquisador olindense José Ataíde. “Macobeba era um bicho inventado, mas o povo tinha medo de sair à noite para não encontrar com ele, embora ninguém o tenha visto”, diz Ataíde.
Só uma vez a assombração ganhou vida, pela astúcia do ex-chefe da Guarda Municipal Plínio Monteiro de Almeida, já falecido. “Ele se vestiu todo de preto, com uns chocalhos na roupa e desceu correndo pela Ladeira da Misericórdia, assustando todo mundo”, recorda o pesquisador.
MUDANÇAS
Até os anos 60, a Bispo Coutinho não era o endereço das tapioqueiras de Olinda, afirma Ataíde. “A rua nem era calçada. Morei nela até meus 9 anos de idade, brincava de pião, bola de gude e bodoque, empinava papagaio e criava passarinho”, diz Joaci Moura, 60 anos. “Hoje vivo em outra área de Olinda, mas passo pela Bispo Coutinho todo dia.”
Além do calçamento, a via ganhou mais altura, acrescenta o artista plástico Luciano Pinheiro, 69, que vive na Bispo Coutinho há 38 anos e é morador de Olinda desde 1964. “Os alicerces das casas do século 16 estão abaixo do atual piso da rua, a mais de um metro de profundidade”, afirma.
“Muita coisa mudou. Gostava do tempo antigo, mais bucólico, e também gosto do novo. Assim como a gente, a cidade se transforma. Isso é normal”, declara o artista plástico que gosta de olhar a paisagem pela janela da sua casa “para ver o espetáculo da vida na Bispo Coutinho”.
Hoje com cinco quilômetros de extensão, a rua foi transformada num corredor cultural – nela ficam o Museu de Arte Sacra, o Mirante da Caixa D’Água, o antigo prédio do Observatório Astronômico, lojinhas de artesanato e restaurantes.
“Problemas existem, como a circulação de carros de manhã cedo, que cortam caminho pelo Sítio Histórico para evitar o trânsito na Rua do Sol. A trepidação provoca rachaduras nas casas. Mas Olinda é minha inspiração. Adoro morar aqui”, destaca Luciano.
Neste sábado, 12 de março, quando a cidade completa 481 anos de fundação, façamos a mesma leitura de Gilberto Freyre: “Quem subir pela primeira vez uma rua velha de Olinda que se lembre de tão grande esquisitão dos tempos coloniais; que se lembre também dos desesperados da justiça do século que outrora subiram estas mesmas ruas para se queixar ao bispo; que se lembre dos outros homens que há quatro séculos sobem estas ladeiras”.