Seu João, seu Mita e Pai do bote passam o dia num eterno vai e vem nas águas do Capibaribe. De domingo a domingo. Faça chuva ou faça sol. Na maré alta ou na maré baixa. Barqueiros no rio mais famoso de Pernambuco eles encurtam as distâncias para as pessoas que precisam atravessar de uma margem a outra a caminho do trabalho, da escola, do parque, do médico, das compras.
As viagens são curtas. Coisa de dois minutos. Os barcos, movidos a remo ou puxados pelos barqueiros com o auxílio de cabo de aço ou de corda, levam e trazem os passageiros desde o alvorecer até o cair da noite. Às vezes até mais tarde. Eles fazem isso há décadas e repetirão o ritual hoje, 24 de novembro, Dia do Rio Capibaribe, definido na Lei Estadual n° 14.011/2010.
Curiosamente, os três barqueiros nem sabiam da data comemorativa. “Dia do rio para mim é todo dia, eu vivo do Capibaribe e adoro o meu trabalho”, declara Antônio José da Cunha, 43, o popular Pai do bote, que faz a travessia da Iputinga, bairro da Zona Oeste do Recife, para o Poço da Panela, na Zona Norte. O serviço funciona das 5h às 19h e cada viagem custa R$ 1.
De pé no barco, no meio do Capibaribe, apoiado na corda que usa para empurrar a embarcação, Pai do bote diz sentir o cheiro do rio quando o vento sopra. “Se não tiver porco, vaca e cavalo morto boiando, o cheiro é gostoso”, diz ele. “Juntando esgoto e bicho, é um fedor insuportável.” A travessia é feita pela família de Antônio há quase 70 anos. “Começou com meu avô. Meu pai era garoto e ele agora tem 74.”
Antônio tem vontade de conhecer o Capibaribe da nascente, em Poção, município do Agreste, até a foz, no Centro do Recife, num percurso de 270 quilômetros. “Eu soube que a água onde ele nasce é limpa, eu queria ir lá me embolar no rio, beber água e tirar fotos para mostrar a todo mundo”, revela. Trinta anos atrás o Capibaribe não era sujo como hoje, destaca. “Limpo, limpo não era, mas dava para a gente tomar banho sem medo”, comenta.
Cliente do barqueiro, Marli Alexandre, 36, mora na Iputinga e trabalha na Bomba do Hemetério, na Zona Norte. Ela pega o bote, anda 15 minutos até Casa Amarela e lá embarca num coletivo. “São 50 minutos e R$ 3,80. Se fosse só de ônibus, pegaria um transporte da Iputinga até o Derby e outro de lá para a Bomba. Gastaria duas horas e meia e R$ 5,60”, compara. “O rio poderia ser mais limpo, mas a travessia é muito bacana. Na quinta-feira vou fazer uma homenagem ao Capibaribe, ele me serve todos os dias.”
Descendo mais o rio, em direção ao mar, Zomilton Tomé Parangaba – seu Mita – faz o trajeto da Torre (Zona Oeste) para a Jaqueira (Zona Norte), numa atividade que passa de pai para filho há uns 80 anos. “Eu era criança e meu avô já remava, comecei a fazer a travessia aos 15 anos, estou com 67 e agora quem está mais à frente é meu filho”, relata. São várias gerações vivendo do Rio Capibaribe.
Foi no Capibaribe que seu Mita aprendeu a nadar e a mergulhar. “Antigamente, a água era limpa, eu mergulhava e trazia areia. Se fizer isso hoje, só vem lama”, destaca. “Conheci o rio sem o manguezal nas margens, havia só areia. Quando faltava água na Torre a meninada vinha tomar banho no rio, era muito animado, os pais é que não gostavam da algazarra”, recorda.
O barco está sempre a postos, das 6h às 20h, e o preço é R$ 1,25. “A escadaria do cais está avariada, fizemos uns reparos, mas não temos condições sozinhos de consertar tudo, seria ótimo se nos ajudassem”, diz seu Mita.
Em São Lourenço da Mata, município do Grande Recife, a família de João Batista Ferreira da Silva e Severino Ferreira preserva a travessia no Capibaribe há 36 anos, transportando passageiros do Centro ao bairro Parque Capibaribe e vice-versa. “Não somos os primeiros, antes da gente outras pessoas faziam esse trabalho”, declara Severino. A viagem dura pouco mais de um minuto e custa 50 centavos.
Se o passageiro não tiver o dinheiro, atravessa do mesmo jeito, afirma o barqueiro. A informação é logo confirmada pelo auxiliar administrativo José Henrique Machado de Lima, 34. Mal entra no barco, Henrique entrega duas moedas de 50 centavos e fala: “Aqui, seu Biu, eu estava devendo uma passagem.” Assim que o rapaz sai do bote, entra uma moça e entrega R$ 1. “Seu Biu, fiquei devendo de sábado.”
Henrique mora em Parque Capibaribe e usava o bote todos os dias na época da escola. “Agora dependo menos do barco, mas toda semana atravesso”, diz. Sem a embarcação, resta aos moradores seguir a pé ou embarcar numa Kombi do transporte complementar e pagar R$ 1,75. “O bote é bom e barato. Poderia ter mais travessias dessa onde o rio é navegável”, pondera.
Olhando a paisagem, com o rio cheio de baronesas, ele lamenta a sujeira no Capibaribe. “Falta saneamento, o rio desce sujo desde perto da nascente e isso é preocupante. Se nada for feito para corrigir a poluição, será que os nosso filhos vão apreciar o Capibaribe?”, indaga Henrique. Moradora de Muribara, bairro vizinho de Parque Capibaribe, Andreza Maria de Souza Nascimento, 28, cruza o rio de barco desde criança, com o mesmo barqueiro.
“Eu vinha com minha mãe, ela pegava o bote para resolver tudo, ainda hoje é a melhor opção de trajeto”, ressalta Andreza, que fazia a travessia terça-feira passada para pegar o filho na escola. “Poderia ir a pé ou de Kombi, mas o percurso é grande.” A construção de uma ponte sobre o Capibaribe e o transporte complementar por Kombi diminuíram a clientela, mas o movimento continua firme e forte, observa João Batista, irmão de seu Biu.
Alheio à data festiva – Dia do Rio e Dia do Capibaribe – João Batista puxa a corda de aço e enquanto o barco desliza ele comenta: só falta limpeza e esse é um problema de todos, quem sacode sofá e fogão no Capibaribe são as pessoas, o povo não tem compreensão”, avalia o barqueiro.