Doze horas separam o horror da coragem. Nesse doloroso intervalo entre o abuso e o desabafo, calar nunca foi opção. A jovem de 18 anos, machucada e humilhada, se negou a deixar para lá. A achar que não ia dar em nada. Que era melhor tentar esquecer. Como se possível fosse. Encontrou na mãe e na tia a força necessária para entrar na Delegacia da Mulher de Santo Amaro e dizer: eu fui estuprada. A coragem de denunciar dela fez acontecer o que, para muitos, parecia improvável. Colocou atrás das grades o médico Kid Nélio Souza de Melo, 35. A coragem dela encorajou outras que, iguais a ela, acusam o médico de estupro e abuso sexual. Doze mulheres. Mas podem ser mais.
Não fosse a jovem de 18 anos, machucada e humilhada, não haveria denúncia, boletim de ocorrência, investigação, pedido de prisão preventiva, transferência para o Cotel. Não haveria uma enxurrada de relatos nas redes sociais. A coragem dela expôs uma sequência de abusos que, segundo a polícia, começaram ainda em 2016. Não foi fácil enfrentar o absurdo. A primeira manchete chocava: “Médico acusado de estuprar paciente dentro da UPA da Imbiribeira”.
A coragem dela esbarrou em desconfianças, julgamentos, acusações. “Ela deve estar querendo aparecer”, “Ela deve ter consentido e depois se arrependeu”, “Por que ela não gritou?” Em menos de 24 horas, a menina, machucada e humilhada, já não estava mais só.
Encorajada pela coragem dela, uma universitária de 34 anos procurou a delegacia. Tinha sofrido na mesma UPA, seis dias antes, nas mãos do mesmo médico, violência parecida. Neste caso, não houve penetração nem ejaculação. A falta de provas a imobilizou. “Era a palavra dele contra a minha”, reconhece a universitária, consciente da condenação que iria enfrentar. A coragem da jovem de 18 anos venceu o medo e quebrou o silêncio.
“O depoimento dela me encheu de força. O meu encorajou o das outras. A denúncia alivia a angústia e gera uma corrente que, nós mulheres, precisamos alimentar. É muito difícil, mas para mim, foi libertador”, diz a universitária, numa conversa que mistura, em diferentes momentos, revolta e superação.
Foi na companhia da tia que a jovem de 18 anos entrou pela porta da Delegacia da Mulher, na noite do último dia 21, para denunciar a violência sofrida. “Ela estava horrorizada. Mas foi muito bem acolhida pela polícia. Conseguiu contar tudo o que aconteceu. Dar detalhes. Provou que estava falando a verdade”, conta a tia, deixando escapar o que talvez tenha sido o fator mais decisivo para dar à vítima a coragem de falar: a confiança no seu relato.
“Em nenhum momento, eu duvidei da palavra dela. Minha filha jamais mentiria sobre uma violência tão cruel.” A declaração é de uma outra mãe, que passou por igual sofrimento imposto à família da jovem vítima do médico. Em janeiro do ano passado, sua filha, uma adolescente então com 16 anos, foi arrastada e estuprada embaixo da Ponte do Derby, que fica por trás do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar.
Ao ouvir o relato da garota, logo após a agressão, a mãe não teve dúvidas. Seguiu imediatamente para a delegacia. Não encontrou, inicialmente, o mesmo acolhimento por parte da polícia, mas, nem por isso, desistiu de seguir adiante. A persistência valeu à pena. Em 15 dias, o agressor foi preso. A coragem da filha encorajou outra vítima a denunciar a violência sofrida embaixo da mesma ponte, poucos dias após a agressão praticada contra a adolescente. E, no momento da prisão do acusado, ele confessou que já estava à procura de uma nova vítima.
À frente do Departamento de Polícia da Mulher, a delegada Gleide Ângelo não se cansa de repetir: Mulher, denuncie. “Denunciar é o primeiro e mais importante passo. Sem ele, a gente não pode fazer nada. Quando a mulher denuncia, ela passa um recado para o agressor: ‘Eu não estou mais sozinha’.” A mensagem é, e precisa ser, ainda mais revolucionária. Calar não é mais opção.