Rosineide Almeida da Silva é evangélica. Aos 53 anos, nunca havia pego em um cigarro de maconha. Com a garra e a coragem que só as mães sabem ter, chegou a ir numa boca de fumo para conseguir a droga. Tinha um objetivo específico: extrair um dos princípios ativos da Cannabis sativa, o canabidiol, para dar à filha, Débora, 8. Com indicativo de autismo, alteração de humor e hiperatividade, a menina sentiu sua vida mudar após o uso do produto, em forma de óleo. Aprendeu a ler, está mais sociável, menos agitada, dormindo melhor. É, nas palavras e no sorriso da mãe, “outra criança”. No final do mês passado, Rosineide e Débora engrossaram, pela primeira vez, as fileiras da Marcha da Maconha, no Centro do Recife. Foram às ruas pedir que a droga seja liberada para cultivo e produção medicinal. A elas, se juntava um enorme contingente de jovens pobres, negros, vindos da periferia. Estavam lá para exigir o fim da criminalização da posse, o que, para eles, significa menos prisões e mortes. Foi uma marcha diferente, um sinal claro de que a cobrança por mudanças na política de drogas do País está ganhando novas e potentes vozes.
A imagem é simbólica. Logo atrás da faixa do evento, vinha uma comissão de frente com crianças em carrinhos de bebê, guiados pelos pais. Na sequência, um trenzinho levava outras mães e filhos. O recado tem endereço certo: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cabe à instituição regular o cultivo de maconha para fins científicos ou medicinais, permissão já concedida em dezenas de países no mundo. A pressão para que a agência brasileira, finalmente, se posicione só faz crescer. Em Pernambuco, duas associações foram criadas este ano para vocalizar essa demanda. “É cada vez maior o número de famílias que recorrem ao uso medicinal da maconha para o tratamento de crianças e adultos. Os ganhos para a qualidade de vida dos pacientes são indiscutíveis. É uma atitude covarde das autoridades protelar essa autorização”, afirma Ubirajara Ramos, um dos fundadores da Associação Canábica de Pernambuco (Cannape).
A outra entidade de representação que acaba de ser formada no Estado é a Associação Brasileira de Cannabis e Saúde (Acolher), da qual Rosineide faz parte. Sem a regulamentação, quem precisa dos medicamentos à base de Cannabis tem que recorrer à importação ou à manipulação caseira. Sem condições financeiras para comprar o óleo fora do País, Rosineide chegou a preparar o produto em casa, buscando tutoriais na internet. “Mas usei um álcool errado na formulação e fiquei com medo de dar o óleo a ela”, diz a mãe de Débora. Ela própria precisou vencer o preconceito em relação à droga. E hoje é uma defensora aguerrida pela liberação do cultivo e uso. “A maconha é uma bênção. Minha filha usa o extrato há menos de um ano e ganhou outra qualidade de vida. Não há como ficar contra algo que, comprovadamente, traz benefícios tão positivos.”
O apelo feito por Rosineide, em nome de tantas famílias, talvez esteja mais perto de ser atendido. Na última sexta-feira, o diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, afirmou ao JC que, até o final do próximo mês, a agência vai formalizar a abertura do processo regulatório do cultivo da Cannabis para produção de medicamentos e pesquisa científica. O passo seguinte será escolher um relator que, junto à área técnica do órgão, vai apresentar uma minuta de regulação. A proposta será submetida a audiências, consultas públicas e painéis científicos, para depois ser avaliada pela diretoria colegiada da Anvisa para aprovação. “Como já estamos há dois anos e meio discutindo esse assunto, não acredito que vá demorar muito tempo para apresentarmos essas normas”, afirmou Barbosa, sem, no entanto, querer estipular um prazo para que a regulação seja aprovada.
A revisão da política de drogas vai além de deixar o preconceito de lado. Passa, principalmente, por ter acesso à informação. Uma das organizadoras da Marcha da Maconha em Pernambuco, Priscila Gadelha afirma que o debate sobre a descriminalização do uso de drogas no Brasil se arrasta a passos lentos porque, em sua avaliação, ainda há uma desonestidade intelectual muito grande na hora de colocar o tema em debate. “A quem interessa a proibição? Tirar o controle da esfera policial para colocá-lo no campo da saúde é uma questão de racionalizar recursos públicos e salvar vidas”, afirma. Uma pesquisa sobre apreensões de droga no Estado de São Paulo, divulgada no mês passado pelo Instituto Sou da Paz, sediado na capital paulista, colocou o dedo na ferida.
Após analisar um universo de mais de 200 mil ocorrências policiais, a entidade constatou que metade das prisões por tráfico de maconha envolve pessoas que portam, no máximo, 40 gramas da erva. A quantidade é equivalente a dois bombons. O montante corresponde, por exemplo, ao limite de porte para caracterizar usuários no Uruguai, país que legalizou e regulou o mercado de maconha. A assessora do Instituto Sou da Paz Carolina Ricardo chama atenção para outro dado do levantamento: 99% das ocorrências representaram apenas 25% da maconha apreendida nas operações. “Esse cenário deixa evidente que há um grande esforço das polícias para produzir poucos resultados. Estamos enchendo os presídios não com quem financia o tráfico, mas com quem está na ponta da linha. É a lógica de enxugar gelo. Os esforços estão sendo colocados no foco errado.”
Quem estuda o tema aponta outro nó a ser desatado. Embora no Brasil o usuário não vá preso, não há uma definição objetiva sobre a quantidade que define o que deve ser enquadrado como posse ou tráfico. A discricionariedade fica nas mãos dos agentes de segurança. “Sabemos da seletividade penal que existe no País. Na prática, significa dizer que a criminalização do uso de drogas tem servido apenas para o encarceramento e o controle da população pobre e negra da periferia. É importante usar a palavra controle porque a droga é hoje o motivo que autoriza a polícia a violar os direitos dentro das favelas”, avalia Ingrid Farias, pesquisadora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista.
No mundo, o tema avança a passos muito mais largos. O Brasil hoje está na lanterna dessa discussão. Mas a pluralidade maior de vozes já começa a surtir efeitos. Principalmente para desconstruir o medo que ainda impera. Pesquisa do Datafolha divulgada no final do ano passado, revela que o apoio à descriminalização da maconha atingiu seu patamar mais alto no País. Apesar de a maioria dos brasileiros (66%) ainda ser contra, 32% apoiam a legalização. É o melhor percentual desde 1995, quando a população passou a ser ouvida sobre o tema.