Há mais de dez anos, a pesquisadora Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, com sede no Rio de Janeiro, chama atenção para a urgência de o Brasil rever sua política de drogas. Apesar do descompasso do País em relação ao mundo, ela é otimista. “Há um exército de formiguinhas na sociedade que está crescendo e exigindo essa mudança.”
JORNAL DO COMMERCIO – como você avalia a crescente pluralidade de vozes em defesa da revisão da política de drogas no Brasil?
ILONA SZABÓ – Anos atrás, a própria Marcha da Maconha era mais voltada para o uso recreativo. Mas o movimento evoluiu muito no sentido de entender que a guerra às drogas impacta a todos. Não importa se você gosta ou não, se usa ou não. A nossa atual política proibitiva causa muito mais dano do que o consumo em si. As pessoas entram nessa causa por várias portas. Tem o aspecto social, da violência, por questão de liberdades individuais, pelo uso medicinal, os aspectos econômicos desse mercado. Ao meu ver, o que ainda falta é informação acessível para a base da população. Ainda é um tema tratado em termos de sim ou não, cheio de mitos e informações equivocadas.
JC – Por que esse debate não chega às esferas dos três poderes? Há um silêncio sobre o tema entre as autoridades governamentais, sobretudo o Executivo e Legislativo.
ILONA – Falta coragem. As autoridades têm a informação. Entre quatro paredes, elas sabem que é um absurdo continuarmos insistindo no erro. Mas tem o custo eleitoral. Como o medo ainda impera, o cálculo eleitoral impede que eles se libertem das amarras e falem abertamente. Eu acho, inclusive, que o custo político, em parte, é superestimado. Porque a população não é boba. Ela entendeu que o que está aí não serve, que nós estamos matando os nossos jovens, mas ainda não conhece os caminhos para construir essa mudança.
JC – Por que a experiência internacional, com resultados reconhecidamente positivos, não consegue convencer o País de que é preciso mudar o foco da nossa política de drogas?
ILONA – Tem dois motivos principais. O primeiro é que a gente tem muito pouca tradição de fazer política pública com base em evidências. A gente prefere achismo, ideologia, não monitora, não está preocupado com resultados. O segundo é que a gente precisa de uma troca de geração no poder político. Nós não oxigenamos as lideranças políticas, não democratizamos o sistema. O Estado está sendo governado por uma geração que trata esse assunto como tabu. O mundo mudou e a gente tem um perfil de governantes ainda avesso à discussão desse tema. Há uma total desconexão do sistema político com as necessidades e desejos da sociedade.
JC – Nesse contexto de atraso, deve-se priorizar os esforços na descriminalização de todas as drogas ou apenas da maconha? Ou o ideal seria já falar de liberalização e regulação do mercado? Do ponto de vista estratégico, qual é o melhor caminho para avançarmos mais rápido?
ILONA – Em relação à descriminalização, é imperativo falar de todas as drogas, sem distinção. Porque não faz nenhum sentido, numa analogia ao consumo de álcool, por exemplo, você distinguir o usuário de cerveja e o de cachaça. Qual a diferença se ele é alcoólatra por ser bebedor de cerveja ou de cachaça? Não há sentido em criminalizar o usuário, seja de que droga for. A descriminalização é um passo mais do que urgente, estamos há muitos anos na vanguarda do atraso. Precisa mudar para ontem. Agora, quando a gente pensa em resolver essa questão de uma forma mais profunda, é imperativo começarmos a discutir qual seria o modelo de regulação, em especial da maconha, porque a gente tem muito mais informação da Cannabis, inclusive no âmbito medicinal, que já está na lei. A gente só não avança, com produção nacional, cultivo, porque não quer. Tem legislação, tem conhecimento, não há nenhum impeditivo para a maconha medicinal, a não ser o fator político.
JC – Como seria essa regulação da maconha?
ILONA – A gente tem que pensar em etapas. Para além do uso medicinal, teríamos que criar um grupo de trabalho para desenhar o modelo que poderia ser adotado no Brasil. É fundamental aprender com os erros e acertos dos Estados Unidos, da Europa, com a experiência de semi-regulação, regulação completa, lugares que avançaram em parte ou no todo. Então é discutir qual o modelo a gente quer para o Brasil e a gente já tem capacidade de fazer isso com agilidade, porque já há muita informação disponível e muita gente aqui estudando isso há muitos anos. Pensar na forma em que esse produto vai ser taxado para gerar recursos para área prioritárias da saúde, educação e segurança pública. Mas é fundamental ressaltar que, qualquer mudança a propor, tem como eixos prioritários retardar o uso e prevenir o abuso.
JC – Qual o seu sentimento em relação ao atual momento da discussão? Há como ser otimista?
ILONA – Vai depender muito das eleições de outubro. Pode destravar esse processo ou travar mais ainda. Mas na questão da sociedade, eu vejo um avanço impressionante. E é da sociedade que vai vir a pressão. Somos nós que vamos levar para o governo essa urgência e essa responsabilidade de fazer a mudança. O exército de formiguinhas da sociedade está atuando e está crescendo. Mais cedo ou mais tarde, e espero que mais cedo, ele vai exigir as medidas necessárias e responsáveis que a gente tanto deseja.