Venezuelanos em Pernambuco: De refugiados a cidadãos

Quatro meses depois da chegada a Igarassu, venezuelanos superam problemas com o idioma e conquistam empregos e novas moradias
Leonardo Vasconcelos
Publicado em 18/11/2018 às 7:38
Foto: Leo Motta / JC Imagem


“Saí da Venezuela por não ter o que comer, só com a roupa do corpo, minha esposa e meu filho de um e ano e dois meses. Hoje, tenho um teto, uma nova profissão e uma chance de lutar pelo futuro da minha família. Nós renascemos em Pernambuco!”. A frase é dita por Joel Antônio Ruiz, 26 anos, com a mesma força com que ele segura nas mãos o diploma do curso de manutenção de computadores que acabava de ser entregue. Um justo orgulho de quem, por necessidade, mudou de país e agora, por esforço, muda de condição: de refugiado a cidadão.

Joel é um dos 120 venezuelanos que foram abrigados no alojamento da ONG Aldeias Infantis S.O.S. Brasil, localizada em Igarassu, na Região Metropolitana do Recife. A “Venezuela Pernambucana” começou a se formar no dia 3 de julho deste ano quando o primeiro avião da Força Aérea Brasileira (FAB) pousou no Aeroporto Internacional do Recife carregado de esperança. Na ocasião desembarcaram 69 imigrantes vindos de Boa Vista, capital de Roraima, Estado que faz fronteira com a Venezuela, em um processo de interiorização deles coordenado pelo governo federal com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU). Depois outros três voos trouxeram mais venezuelanos.

O número de refugiados e migrantes venezuelanos no mundo já chega à marca de 3 milhões de pessoas, de acordo com dados divulgados na última quinta-feira pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur). O motivo da fuga do próprio país tem nome: Nicolás Maduro. A crise econômica, social e política instaurada no governo dele é insustentável, como reclama Augusto Zambrano, que veio para Pernambuco. “O governo não presta, desde que começou tudo está desmoronando. Ele não serve como presidente, não sabe administrar o país, ninguém quer ele lá”, afirmou Augusto.

O alojamento administrado pela ONG, em Igarassu, conta com uma estrutura parecida à de um condomínio residencial. São sete casas, cada uma tem quatro quartos, que comportam até 10 pessoas. Os moradores do entorno receberam de braços abertos os novos vizinhos. “São pessoas trabalhadoras, do bem e alegres. No começo foi meio difícil a comunicação, mas agora já dá até pra arranhar algumas palavras em espanhol”, brincou o aposentado Antônio Bernardo, 58 anos.

O acordo de permanência dos venezuelanos no local, com as despesas financiadas pelo Acnur, é inicialmente de seis meses. “O Acnur fez um acordo com a ONG para custear hospedagem e alimentação deles, enquanto o poder público municipal e o estadual garantem acesso às políticas públicas. O prazo inicial de acolhimento na ONG é de seis meses enquanto não conseguem a autonomia financeira para saírem de lá. Temos a informação de que 19 pessoas já deixaram o local. Mas quem não conseguir ficar independente até o prazo terá a situação analisada e, se for o caso, o benefício será estendido”, explicou o secretário-executivo de Assistência Social de Pernambuco, Joelson Rodrigues.

Por isso, cada dia em Pernambuco para os venezuelanos é uma verdadeira corrida contra o tempo para conseguir meios de sobrevivência. Um dos caminhos disponibilizados para isso foi o da qualificação. Vinte e dois deles concluíram no mês passado um curso de manutenção de computadores oferecido gratuitamente pelo Polo de Formação e Reúso de Eletroeletrônicos do Nordeste. Entre eles Joel, o que exibiu o diploma com satisfação. “Eu não entendia muito de computadores, mas aprendi a fazer manutenção, montagem e conserto. Agora, com o curso, me sinto mais confiante e acredito que será mais fácil conseguir um emprego”, disse.

A esposa dele, Jessireth Millan, 26, que também fez o curso, estava ainda mais radiante porque na véspera da formatura da turma ela recebeu um telefonema de uma empresa. “O curso já começou a dar frutos! Eles me ligaram dizendo que fui selecionada e que iria começar a trabalhar ainda este mês!”, disse a jovem, que logo depois não segurou as lágrimas. “Eu me emociono porque as pessoas daqui se preocuparam com a gente, nos deram uma oportunidade de aprender, de fazer algo útil, de ter esperança. Tenho certeza de que Deus nos trouxe até aqui com um propósito e temos fé que as coisas vão melhorar... Já estão melhorando”, afirmou Jessireth.

O ajudante de cozinha Eduardo Medrano, 38 anos, é um dos poucos venezuelanos que já conquistaram não só um trabalho como também o reconhecimento por meio dele. Ele havia feito um curso básico de culinária no seu país e passou muitos anos trabalhando em restaurantes e lanchonetes. Menos de um mês depois de ter chegado a Pernambuco já estava trabalhando em uma padaria gourmet em Igarassu. “Um cliente me falou que entre os venezuelanos estava um com boa experiência em cozinha. Então, chamei para uma entrevista e no teste todos já notaram que ele era diferenciado e tinha umas técnicas mais elaboradas”, contou Inês Gugel, dona da padaria. Ela diz que viu nos pratos dele um ingrediente básico, reconhecido em qualquer país: o tempero do amor. “Pela necessidade acho que toparia qualquer emprego, mas a gente vê que a cozinha para ele é uma verdadeira paixão”, garante.

O jeito tímido de Joel só desaparece quando ele está com as panelas nas mãos. “O meu maior prazer é ver o cliente satisfeito. Isso me mostra que estou cozinhando bem e me faz querer melhorar a cada dia”, disse, diante do calor do fogão. Questionado sobre sua força de vontade, o pai de um menino de 9 anos e um casal de gêmeas de 2 anos não titubeia: “Minha inspiração são meus filhos. Abandonei o meu país por eles, todo o meu esforço é por eles. É o que me faz seguir adiante”.

A timidez é vencida pelo sorriso largo quando fala da chance que teve de incluir no cardápio algumas opções de comidas venezuelanas. “Graças a Deus eu tive a chance de apresentar alguns pratos. Já testamos um guisado de carne com beringelas. Acho que gostaram. Os pratos voltaram vazios!”, contou, rindo, com satisfação de quem com um prato matou um pouco da saudade de casa.

“O que eu ganhava em um mês dava para comprar apenas um quilo de arroz e dois ovos. Cada dia que passava eu via os meus filhos mais acabados. Eu ia para trás da minha casa e chorava. Perguntava a Deus se iríamos mesmo morrer de fome na Venezuela”, disse. Foi então que o próprio Maudi decidiu dar uma resposta. Difícil, mas necessária. Reuniu a esposa e os cinco filhos, juntou o pouco que tinha e pegou um ônibus até a fronteira com Roraima. Quando entraram no país, na cidade de Pacaraima, não tinham mais recursos para seguir até a capital Boa Vista, distante 215 quilômetros. “Olhei para os meus filhos e perguntei: Estão dispostos? Me responderam: ‘Sim, papai’. Então vamos, vamos a pé”, contou.

E assim foram, os sete juntos, caminhando pela BR-174 em três dias de caminhada. “Saíamos às 6h e andávamos até as 17h. Só parávamos para comer uma banana ou pão com mortadela e dormr em qualquer lugar. Lembro que minha filha menor virava pra mim e perguntava: ‘Ai papai, quando vamos chegar?’ Eu dizia: Filha, fique tranquila, logo vamos chegar”, relembrou, engolindo seco a recordação amarga.

Na tarde do segundo dia de jornada, surgiu uma ajuda que obrigou Maudis a tomar uma difícil decisão. Depois de tanto pedir carona, um carro parou, mas não havia espaço para todos. “O motorista me disse que só dava para levar minha esposa e os filhos pequenos. Eu nem pensei direito e disse para levá-los porque não aguentava mais vê-los caminhando”, relatou.

O motorista deixou Milagros e os quatro filhos mais novos em Boa Vista e eles foram até uma praça. “Fiquei com muito medo porque me disseram que nem todos conseguiam completar o percurso. Me perguntava: E se eles não chegarem? O que vou fazer da minha vida?”, questionou. Dúvidas que só acabaram no final da manhã do dia seguinte quando viu o esposo e o filho mais velho chegando. “Minha filha gritou: ‘Lá vem o papai!’ Que alegria no meu coração”, rememorou Milagros.

Mas tudo o que a família passou foi deixado para trás quando vieram para Pernambuco. Aqui só querem motivos para comemorar, como no dia do aniversário de 15 anos de Jesus, o filho mais velho que ficou ao lado do pai até o fim da caminhada. “Fiquei feliz no meu primeiro aniversário aqui (no fim de outubro). Mas o melhor presente pra mim seria o meu pai conseguir um emprego e a gente ter uma casa só pra gente”, revelou.

Lições da escola para a vida

Bem-vindos, ou melhor bienvenidos, foram os filhos dos venezuelanos na rede municipal de ensino de Igarassu. Desde o dia 6 de agosto, 19 crianças de 4 a 11 anos estão estudando na Escola Municipal João de Queiroz Galvão, no Centro da cidade. Eles foram reunidos em uma turma especial para facilitar o aprendizado do português e no final do ano letivo será feita uma avaliação para identificar em qual série cada um vai se encaixar.

“Tivemos que nos preparar em tempo recorde para recebê-los. Mas conseguimos nos organizar para dar todo o suporte de fardamento, material didático e possibilidades pedagógicas para desenvolver a interação deles com a língua portuguesa. No fim do ano vamos fazer uma avaliação para analisar as habilidades deles e no próximo ano incluí-los nas salas de aula do ensino regular”, explicou a coordenadora pedagógica da rede municipal de ensino, Ana Lúcia Araújo.

A tarefa de comandar a sala ficou a cargo da professora Eudes Lima, 46, escolhida por ter fluência em espanhol, já que havia voltado recentemente para o Brasil depois de morar 12 anos na Espanha. “A Secretaria de Educação entrou em contato comigo, me propondo esse desafio e eu aceitei. O dia a dia com esses meninos é um barato. Eu estou revivendo o espanhol dentro da minha própria terra e eles agora estão vivenciando o português dentro da nova terra deles”, contou. Depois de mais de três meses de ensino, ela comemora os avanços. “Quando vejo a evolução de cada um, já se comunicando em português, para mim é um grande orgulho, já são os frutos do que plantamos no começo da turma”, disse Eudes.

Empenho da professora, comprometimento das crianças. Uma das mais esforçadas da sala é Jhoelis Solozano, 10 anos, que explicou, em português, como fez para acelerar o aprendizado. “Eu perguntava aos brasileiros se eles podiam ser meus amigos e me ensinar um pouco da língua. Daí, pedia para eles irem lá para a aldeia (ONG) me ajudar a estudar”, afirmou. Ela conta que tudo o que aprende na escola ensina em casa para os pais. “Eles não sabiam o que era bolacha e eu expliquei o que era. Em espanhol chamamos de galleta. As palavras que conheci na escola mostro pra eles saberem também”, disse Jhoelis.

Para as crianças venezuelanas, ler um livro em português é um grande desafio. Isaias Medrano, 8, surpreendeu os colegas e até a professora quando conseguiu. “Eu me sinto muito inteligente porque consigo entender quase tudo. Estou feliz por já conseguir conversar com meus amigos brasileiros”, afirmou, orgulhoso. Incentivado pela professora a mostrar sua habilidade, ele pegou o livro 13 pensamentos sobre o amor e leu a primeira frase da página inicial, que na verdade foi uma grande lição para todos: “O que aconteceria se, um dia, eu acordasse e fosse capaz de falar todos os idiomas do mundo?”

Um sonho realizando sonhos

Um sonho que foi realizado por meio de outro sonho. Pode parecer estranho, mas foi exatamente assim que o casal Marimar Mendéz, 31 anos, e Augusto Zambrano, 23, conseguiram conquistar o objetivo comum a todos os venezuelanos: deixar o alojamento da ONG, em Igarassu, e ter uma nova casa para morar e um emprego. Quem teve o sonho que mudou suas vidas, no entanto, não foram eles e, sim, a empresária Adriana de Angelis, 39, que mora em Bairro Novo, Olinda.

Ela conta que teve um sonho estranho em maio deste ano. “Não acredito em sonhos. A minha religião nos faz entender que eles meramente reproduzem o que vivenciamos nos dias, mas naquela noite eu tive um sonho com um casal que vinha para o Brasil e ficava abrigado em um local descampado. Uma menina baixinha, de cor clara, cabelos até os ombros e o rapaz moreno, de cor tipo jambo. E algo me dizia que eu deveria cuidar deles. Quando contei pro meu esposo, ele riu, mas eu senti algo muito forte, como se aquilo fosse verdade”, relatou.

Dois meses depois Adriana ficou sabendo da chegada dos venezuelanos a Pernambuco. Decidiu, então, seguir sua intuição e foi até a ONG. Ao chegar lá, contou do sonho e descreveu com detalhes o casal para uma assistente social que disse haver um lá com exatamente as mesmas características. “Quando Marimar ia passando eu reconheci na hora que ela era a moça que vi no sonho. Me levantei, fui até ela e dei um abraço emocionada. Ela ficou surpresa, mas logo depois contei a eles do meu sonho”, disse.

Marimar, claro, tomou um susto. Mas depois lembrou de suas preces. “Quando abrimos a porta, ela disse: ‘São vocês!’ Fiquei surpresa e não entendi nada, mas quando ela falou do sonho as coisas começaram a fazer sentido. Eu ia à igreja todos os dias e pedia um trabalho para nós. Mas nunca iria imaginar que ia surgir assim, de um sonho. Não sei explicar o que aconteceu, mas acredito que foi Deus quem enviou essa bênção”, contou. Seguindo o seu sonho, Adriana dias depois levou os dois para casa, empregando-a como doméstica e ele como motorista de caminhão em um armazém da família, ambos com carteira assinada.

A felicidade de ter um emprego e teto, todavia, não esconde a tristeza por quem ficou na Venezuela. No caso, os três filhos – de 15, 12 e 2 anos. Lembrança inevitavelmente acompanhada de lágrimas. “Como não pensar neles, que estão passando fome lá enquanto estou aqui? Cada vez que me alimento aqui eu penso neles, se terão conseguido comida ou não. Não tem como não chorar. Não tem como não lembrar”, afirmou Marimar, limpando o rosto inchado e se consolando com o fato de, ao menos agora, com o trabalho poder mandar dinheiro para a família.

O maior desejo de Marimar é o mesmo de qualquer outra mãe, independentemente de nacionalidade. “Só queria ter meus filhos ao meu lado. Se eu pudesse trazê-los para cá, ficaria mais tranquila”, disse. Uma situação que comove qualquer um, inclusive quem deu abrigo a eles. “Me emociono porque são pessoas maravilhosas que fui incumbida de ajudar. Não sei como nem por quê, mas estou cuidando. Os venezuelanos vieram pra cá dispostos a arregaçar as mangas, enquanto brasileiros muitas vezes têm oportunidades e não querem. Os refugiados estão dando um grito de socorro, basta as pessoas quererem escutar e ajudar também”, afirmou Adriana.

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