Cecília tem 23 anos e uma vida agitada. Ela trabalha como cuidadora de idosos, faz faculdade de psicologia, malha, cuida da irmã com deficiência, é ativista social e faz planos com o noivo de casar e ter filhos. Uma rotina comum a de milhões de pessoas, mas que muitos duvidaram ser possível para ela, a começar por sua mãe, Esmeralda. Cecília foi contaminada pelo HIV quando ainda estava no útero materno. Esmeralda recebeu o vírus em uma transfusão, dez anos antes, e, sem saber, transmitiu para o filho João, hoje com 24 anos, e depois para Cecília. Só descobriu quando a menina tinha 9 meses. E pensou que nenhum dos três viveria muito tempo. Mas essa não é uma história de final triste, aliás, quem foi que falou em final?
No Dia Mundial de Luta contra a Aids, criado há 30 anos, a história é de superação. Os nomes citados são fictícios, para preservar a identidade da jovem. “Embora todo mundo saiba, não gosto de me expor porque ainda há muito preconceito”, diz Cecília, que recebeu o JC com um sorriso, na sede da Organização Não-Governamental (ONG) Gestos, na Boa Vista, Centro, instantes antes de duas provas que faria na faculdade.
A universitária relata que o caminho foi cheio de percalços. A mãe pegou uma grave infecção hospitalar logo após o parto da primeira filha (hoje com 32 anos), que nasceu com mielomeligoncele (defeito congênito que afeta a espinha dorsal), e precisou de transfusão. Um dos doadores era um parente. “Quando ele morreu minha mãe estava com tuberculose, só então o companheiro dele contou que ele tinha Aids e os exames confirmaram a doença na minha mãe, em mim e no meu irmão”, conta.
Na época, Esmeralda ainda amamentava Cecília. “A família da minha mãe diz que foi muito impactante quando ela descobriu. Ela não aceitou. Não queria saber de médico, nem de medicamento – ela fingia que tomava, mas escondia. Também não dava para a gente. O vírus não estava controlado, o preconceito era muito grande. A cabeça dela girava em torno de perder os filhos. Achava impossível a gente sobreviver”, conta.
Um dia, a mãe de Esmeralda descobriu que ela estava escondendo os remédios. “Por conta disso, uma vizinha, que é enfermeira, resolveu ajudar e me pegou para criar por um tempo (pouco antes dos 2 anos até os 4 anos), enquanto meu tio cuidava do meu irmão. Esmeralda adquiriu um câncer de intestino. Os filhos voltaram a viver com ela. O pai, caminhoneiro, vivia viajando.
“Eu me lembro muito de ver ela doente e do dia em que ela morreu, porque fui eu que estava com ela. Tinha 6 anos e tentava lhe dar os remédios (já tomava os meus sozinha), mas ela não queria. Chamei minha avó. No caminho para o carro ela morreu”, relata emocionada. Foi aí que a notícia de que a família tinha o HIV se espalhou. “A mãe de um aluno foi até a nossa escola e disse que se a gente não saísse de lá o filho dela sairia. O diretor pediu para a gente sair, mas uma equipe do Imip foi lá e acordaram que a gente ia ficar até o ensino médio”.
Mas na segunda série Cecília pediu para trocar de escola. “Depois que passei a entender o que tinha ocorrido eu olhava para todo mundo com desconforto”, comenta. Mas na nova escola a notícia também chegou. “Por muitos anos, essa história me incomodou na escola. Uma hora as pessoas acabavam chegando, cheia de rodeios, para perguntar. Se um menino chegasse junto para namorar diziam a ele que eu era um perigo para a sua saúde”.
Foi assim que ela escondeu a situação do primeiro namorado. “Ficamos juntos quase quatro anos, mas eu nunca o assumi e nunca tive coragem de contar. Por medo. Ele falava muito do assunto, eu achava que era discriminação, mas era porque ele sabia e queria que eu contasse. Mas eu corri”, diz. Um dia, o atual noivo se aproximou e ela resolveu agir diferente. “No primeiro dia eu disse a ele: minha situação é essa. Vai querer? E ele falou: Tem problema não. Eu gosto de você”.
O que a fez mudar de atitude? “O cansaço de correr do assunto. O assunto dói tanto na pessoa que a gente corre. Mas depois que aceitei, tudo mudou. Hoje eu acho até graça quando alguém vem perguntar. As pessoas olham para mim e dizem: ela é bonita, cheia de vida, malha, trabalha, casou, nunca me viram internada (só fiquei doente entre 6 e 8 anos, eu e meu irmão tivemos pneumonia e tuberculose), então não acreditam”.
Cecília é indetectável há três anos. Tem o vírus, mas não transmite, condição adquirida por muita gente após o tratamento. Mas ainda usa camisinha para se proteger e proteger o noivo. Os planos de aumentar a família vêm junto com o de recomeçar a vida em outro bairro. “Quero começar do zero. Tenho 99% de paz, para chegar aos 100% falta zerar o preconceito e está longe disso acontecer. É preciso informar mais as pessoas”, revela.
A universitária comemora a qualidade de vida que as pessoas com o vírus conseguiram adquirir. “Uma vez por dia eu tomo um coquetel, é um remédio como outro qualquer. Antes eu ficava na pressão, não gostava, mas precisava. Aceitar dóis menos”, simplifica. A escolha do curso de psicologia veio pela vontade de ajudar as pessoas, inclusive as que recebem o diagnóstico de soropositivas.
Questionada sobre o que dirá a esses pacientes, ela não titubeia: “Direi que a vida segue e é muito linda. Mesmo com o vírus, não deixa de ser maravilhosa. Isso não é nada, não. A pessoa se adequa a doença, a doença se adequa a pessoa. A vida continua. Se a gente pensar negativo só vai aumentar uma coisa que não é um bicho de sete cabeças. Hoje muita gente tem vida normal, constitui família. Tem gente que diz que é coragem uma pessoa sadia ter uma relação com uma que tem o vírus. Mas é o amor que está vencendo”.