As prévias carnavalescas foram apenas o pretexto - aliás, ótimo pretexto. Mas o Guaiamum Treloso, em sua versão rural, no Sítio Bem te vi, quilômetro 13 de Aldeia, foi um festival de música pop dos que poderiam acontecer em qualquer época do ano. E com um encontro que já nasce histórico. No mesmo palco, Otto e Johnny Hooker fizeram um show nada menos que apoteótico, o ponto alto da festa.
Passava das 19 horas quando Jonhny deu início ao concerto. Com a banda que lhe acompanha, tinha já a audiência magnetizada nos primeiros acordes de Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito!. E fez o de sempre, sua espécie de missa pagã temperada com androginia, dor de cotovelo e rock' n' roll. Se, antes, o público estava meio disperso pelo sítio, a audiência não tirava os olhos do palco até durante os silêncios do cantor.
Na metade do show, os acordes desacelerados de Disritmia trouxeram Otto como convidado ao palco: o dueto deles na canção de Martinho da Vila promete virar um desses hits de acesso no Youtube. Com sua indefectível garrafa de água mineral, Otto se molhou, sensualizou sua música e o encontro com o parceiro. A sintonia dos dois era grande durante a execução, catártica, de Seis Minutos. Depois de Ciranda de Maluco, se abraçaram e trocaram selinhos fazendo a temperatura da plateia subir.
Antes, a tarde teve grandes momentos (e outros nem tanto, com bandas que não chegaram a mobilizar atenções). Com participação especial do guitarrista Paulo Rafael e do compositor Juliano Hollanda no baixo, a Ave Sangria não precisou suar camisa para ganhar o público. Mal o vocalista Marco Polo Guimarães soltou a voz com os primeiros acordes, o público cantava liturgicamente cada verso de clássicos do udigrudi tropicalista pernambucano dos anos 1970. Como sempre, o Pirata provocou um grande coral no público. A bem humorada Seu Valdir, idem. "Nós somos a única banda de rock de Pernambuco que toca samba de breque", brincou o vocalista.
Apesar da distância do Recife, o lugar ajudou muito a formar a atmosfera. Cercado de matas, o sítio evocava um certo clima woodstockiano, até pela chuva que ameaçou, mas não caiu. Com pouquíssima gente fantasiada, havia mais pessoas com roupa e cara de quem, de fato, estava num festival de rock. Muitos aproveitaram para estender a canga no gramado.
O sistema de transporte em ônibus exclusivos do evento saindo dos principais shoppings do Recife funcionou perfeitamente, com saidas regulares a cada meia hora. "O ônibus era confortavel e saiu na hora. Sem trânsito, em menos de uma hora eu cheguei em Aldeia", disse a universitária Clara Andrade, 20 anos. Para ir e voltar, cada folião pagava R$ 10. Nos intervalos, os DJ 440 e Lala K mandavam hits da "música pra pular brasileira"
Apesar da cerveja nem sempre gelada, a prévia contou com uma infra relativamente surpreendente pela localização tão rural. Havia um miniparque de food trucks (sem muita variedade) e serviços com barbearia vintage, tatuador e massagem no local. Difícil era usar os banheiros químicos. Dentro das cabines, as pessoas precisavam ligar a lanterna do celular para poder enxegar a latrina. No dia anterior, aliás, Clayton Barros teve que se virar com gambiarras pra fazer seu show com repertório de Zé Ramalho. Problemas no gerador atrasaram a apresentação para os cerca de 400 presentes.
Com mais de dois mil ingressos vendidos, e a concorrência de prévias como a do bloco Amantes de Gloria, que encheu as ruas do bairro da Boa Vista, a festa do sábado não chegou a lotar. Mas quem estava de lá, circulando e dançando na tranquilidade, longe do sufoco das festas do período, parecia estar adorando.
No final, a banda carioca Cidade Negra assumiu o palco. O povo ainda estava alegrinho, mas foi um show sem grandes momentos, monocórdico, dos que parecem playblack. Uma apresetanção eficiente, no entanto, para o público começar a descompressão dos concertos anteriores.