Naquele dia, a estudante de nutrição Maria Eduarda Galvão, de 20 anos, havia saído da casa do namorado mais cedo, por volta das 16h, porque ainda estava claro e, por isto, "era mais tranquilo voltar sozinha". Ele a deixou na parada e ela embarcou em um ônibus da linha 20 - Candeias/TI Tancredo Neves, onde se sentou ao lado de uma menina. Aos poucos, o coletivo foi ficando cheio, coisa comum para o horário, segundo Eduarda. Um homem ficou em pé na sua frente.
Quando o ônibus chegou em Piedade, em Jabotão dos Guararapes, a garota que estava ao lado pediu parada."Como estava muito apertado, tive que me levantar. O rapaz colocou o braço de um lado e do outro e eu senti que ele estava encostando demais em mim. Além do necessário. Respirando no meu ouvido e eu tentando sair, pedindo licença", relata a estudante. Depois de ignorar os pedidos, o rapaz foi chamado atenção por um outro passageiro do coletivo, mas também não deu ouvidos. Eduarda deu uma cotovelada no homem que a encurralava.
"Não surtiu muito efeito, por causa do movimento do ônibus. Foi quando o outro passageiro, indignado, segurou ele e todos no ônibus começaram a gritar, dizendo que tinha um tarado. Ele ficava me xingando e me chamando de mentirosa", diz Eduarda. No momento, o motorista parou o coletivo e chamou uma viatura da polícia que passava pelo local. A estudante, então, fez a denúncia pelo telefone, com a ajuda do policial. "Chorei muito, principalmente quando ele começou a me xingar. Fiquei com medo de pegar o ônibus novamente com ele. É indignante. Eu já ia voltar pra casa mais cedo por causa disto. É bem indignante", acrescenta.
A então estudante Beatriz Morais*, de 22 anos, embarcou no coletivo da linha 60 - TI Tancredo Neves/TI Macaxeira, às 8h, em direção à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde estudava, em 2014. Horário de pico, empurra-empurra. De costas para o corredor, ela notou algo fora do comum quando um homem começou a olhar para ela fixamente, com o rosto abismado. "Foi quando senti um cara encostando em mim. Quando olhei, ele tinha tirado a roupa e estava se masturbando atrás de mim, encostado. Eu não tinha percebido porque o ônibus estava muito lotado, imaginei que fossem as pessoas passando, se mexendo", afirmou Beatriz.
O homem ainda a puxou pelo braço. "Eu não consegui fazer nada, nem gritar. Apenas chorar. E ninguém fez nada. Como alguém pediu parada, ele saiu correndo e desceu do ônibus". Consolada por outros passageiros, Beatriz foi à delegacia de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. "O delegado não se importou nada. Só fez o registro e disse que iria averiguar, mas que sem o número do veículo, seria difícil conseguir. Ele disse também que ia tentar ver as câmeras, mas que dependia da empresa liberar ou não", conta. Beatriz comenta que chegou a ver o homem outra vez no terminal. "Liguei para o meu pai e ele disse que tentou falar com a delegacia, mas não tinha ninguém".
*Nome fictício. A personagem preferiu preservar sua identidade
Para a militante feminista e especialista em gênero, desenvolvimento e políticas públicas, Paty Sampaio, na cultura patriarcal brasileira, os diversos tipos de violência contra mulheres são bastante naturalizados e, às vezes, nem elas percebem que estão sendo vítimas. Ela reforça que ainda existe despreparo para tratar do assunto no poder público, resultante da naturalização da violência de gênero. "É comum percebermos jargões que se popularizam como se fossem verdades, como o que diz 'as mulheres gostam'. Quando as ouvimos, percebemos que não é bem assim. Assédio incomoda, invade", comenta. Veja, na arte, dados de pesquisa realizada pelo Instituto YouGov e divulgada pela Organização ActionAid em 2016:
Sobre a culpa que muitas mulheres vítimas enfrentam, mesmo não sendo culpadas de nada, Paty declara que faz parte da cultura do estupro. "Ao invés de ensinarem os meninos a não assediarem, as pessoas se preocupam muito mais em doutrinar as meninas a terem comportamentos e movimentação física bastante reprimidos. Daí, os meninos vão introjetando a ideia de que podem invadir o corpo das mulheres e elas de que, se alguma coisa falhou, foi porque ela 'não se comportou direito'". Paty defende que, para mudar esta realidade, é necessária uma educação doméstica igualitária, criando meninas e meninos da mesma forma, seja nas brincadeiras, nos brinquedos, como também na movimentação física, sem distinção de gênero.
Mulheres que sofrerem assédio em transporte público podem entrar em contato pelo telefone 0800.281.8187 com a Ouvidoria das Mulheres/Cidadã Pernambucana. A mulher deve informar as características físicas e vestimenta do agressor, linha e número de ordem do ônibus (numeração geralmente com três dígitos), data e horário em que ocorreu o fato e imediações em que o transporte passava no momento. Além disto, é importante que a pessoa vá à delegacia mais próxima (ou à Delegacia da Mulher) para fazer o Boletim de Ocorrência.
O Vagão Rosa entrou em funcionamento em janeiro deste ano no metrô do Recife. A medida foi realizada para que diminuísse o número de assédio contra mulheres que, segundo os últimos dados divulgados pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos do Recife (CBTU), do ano de 2007, corresponde a 56% dos usuários dos trens. Apesar do vagão funcionar nos horários de pico, da segunda-feira à sexta-feira, entre 6h e 8h30, pela manhã, e das 16h30 às 19h30, à noite, a medida tem sido criticada por falhas no sistema.
Segundo Paty Sampaio, a separação entre homens e mulheres não é a melhor solução para resolver o problema do assédio no transporte público. "O foco precisa ser o agressor, a certeza da punição, e, nas mulheres, o foco precisa ser o estímulo às denúncias, além de aumento na segurança dentro dos vagões. O assediador precisa entender que assédio sexual é violência e que ele, se cometer essa violência, será punido com o rigor da lei", relatou Sampaio.
Ela ainda argumenta que o foco do problema deve ser na raiz dele, o machismo institucionalizado. "Sem a associação com estas medidas educativas e punitivas, o vagão rosa não vai servir para nada, porque a mulher vai sair do metrô e vai continuar sendo assediada na rua ou dentro do ônibus", afirmou a especialista em gênero, desenvolvimento e políticas públicas.
Além dos problemas do vagão enquanto política pública, há muita reclamação quanto à fiscalização e efetivação da medida. De acordo com usuários do metrô, muitos homens acabam entrando no vagão que é destinado às mulheres nos horários de pico. Um desses flagrantes foi feito pelo usuário Cristiano César, enviado pelo Comuniq, que nos relatou que homens estavam entrando no vagão rosa às 6h, em um dos trens que seguiam para o itinerário Jaboatão, na Estação Joana Bezerra. Segundo ele, não havia segurança no local.
A CBTU Recife informa que o vagão rosa é exclusivo para mulheres de segunda à sexta e nos horários de pico, das 6h às 8h30 e das 16h30 às 19h30. Nos demais horários, é livre a entrada de passageiros do sexo masculino. Caso algum homem tente utilizar o vagão rosa no horário de pico, será convidado a se retirar pela segurança. As passageiras também podem ajudar a denunciar, ligando para a Ouvidoria (2102-8580)
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