Uma trincheira nova. Uma arma na mão do cidadão contra uma polícia que mata, espanca, humilha e desrespeita a lei que é paga para proteger. Diante da truculência, a câmara do celular tem sido uma ferramenta de denúncia que pode até não barrar a impunidade, mas dá visibilidade e repercussão aos abusos cometidos pelos agentes de segurança. Coloca o dedo numa ferida que tem se mostrado difícil de sarar. As imagens do jovem Edvaldo Alves dos Santos, 22 anos, sangrando e sendo arrastado pelo chão, após levar um tiro disparado por um policial militar, estamparam a violência cometida pelo aparelho policial em Itambé, Zona da Mata do Estado, há cerca de 15 dias, durante protesto que exigia justamente mais segurança. Sem o vídeo, viralizado nas redes sociais, o episódio dificilmente teria repercutido para além dos limites da cidade. Um minuto e vinte e nove segundos de gravação. Tempo suficiente para escancarar o absurdo. Furar o silêncio.
As imagens provocaram indignação imediata. Desconstruíram também a versão dada pelos três policiais militares envolvidos no caso, em depoimento prestado na delegacia, logo após a agressão. Foi com base na divulgação do vídeo que a Corregedoria-Geral da Secretaria de Defesa Social abriu o procedimento administrativo para investigar os PMs. Em outro episódio, ocorrido uma semana após o caso de Itambé, dessa vez na cidade de Sirinhaém, no Litoral Sul do Estado, um oficial é flagrado dando um tapa na cara de um jovem durante uma abordagem policial. Após a circulação do vídeo na internet, a investigação foi aberta e o PM, afastado das atividades de rua.
Expor a truculência fardada, com flagrantes registrados no celular, tem contribuído para dar visibilidade a uma parcela da população quase sempre invisível aos aparelhos de Justiça. O medo de represália vem cedendo lugar à indignação. Um sentimento de inconformismo diante da quase certeza de impunidade. “Virou um instrumento de defesa de quem costuma não ter voz”, diz Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Estudioso da cultura policial, ele afirma que a gravação e divulgação de vídeos têm sido importante porque o controle externo do Ministério Público sobre as polícias praticamente inexiste no Brasil. E, quando acontece, muitas vezes não encontra respaldo na própria sociedade.
Nesse ponto, o especialista levanta uma questão que está na raiz da violência policial: a legitimação dada pela população para os abusos cometidos por agentes fardados. Alcadipani cita, como exemplo, a absolvição, na última terça-feira (28), de três policiais militares de São Paulo que foram acusados de jogar um suspeito de assalto do telhado (a uma altura de três metros) e executá-lo a tiros após a queda, em setembro de 2015. Imagens gravadas flagraram a ação policial, mas o júri popular entendeu que os PMs agiram em legítima defesa. “Dependendo da vítima, essa indignação é relativa. Porque no Brasil a população aprova que criminoso apanhe ou morra. Nesse sentido, a gente é uma sociedade medieval. Estudos feitos pela Fundação Getúlio Vargas mostram que, em casos de execução policial, o júri tende a absolver os agentes quando a vítima tem ficha corrida na polícia. Essa informação é determinante para definir, nas ruas e nos tribunais, o nível de tolerância da violência praticada pelo Estado”, observa o professor da FGV.
Entre as décadas de 1990 e 2000, o hoje coronel reformado Ricardo Aureliano de Barros Correia participou de uma experiência inusitada na Polícia Militar de Pernambuco. Na época, pela primeira vez, foi introduzida a disciplina de direitos humanos no currículo da formação policial. Referência nessa área, o coronel brigou para levar práticas mais cidadãs para dentro da corporação. Claro, encontrou resistências. Mas não perdeu a esperança. “O policial se enxerga muito mais protetor do Estado do que do cidadão. A própria sociedade repete que ‘bandido bom é bandido morto’. Ou a gente rever essa cultura organizacional ou a transformação não vem. Basta ver o ódio que se criou ao conceito de direitos humanos na população. E essa cultura de não aceitação se reproduz na instituição. Porque eu não recebo esse policial de Marte. Ele sai da sociedade. Faz parte dela.”
Coronel Aureliano defende que a prática da violência policial não pode ser discutida sem que se faça uma pergunta essencial: “Que tipo de democracia a gente vive no País?” E já emenda com outro questionamento: “Até que ponto são aceitas e permitidas por governo e sociedade as manifestações da população?” As duas provocações estão diretamente ligadas ao fato, no entendimento do coronel, de que, na prática, os governos não fazem seu papel de protetor e se utilizam dos seus aparelhos policiais para agir contra o povo. “A polícia vai morrer dizendo que vai para a rua defender o cidadão. A questão é: quem, nós – sociedade e governo – definimos como cidadão?”
Assim como o coronel Aureliano, a pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Ronidalva de Andrade Melo está na gênese da experiência de levar o conceito e, o mais difícil, a prática de direitos humanos para os quartéis da PM de Pernambuco. Na condição de professora, por mais de uma década, deu aulas a oficiais e praças. Saiu com a impressão de que, apesar do esforço de muitos, a defesa de uma polícia cidadã existe só no discurso. “É o politicamente correto. Mas, na prática, o policial continua agindo com a mesma carga de autoritarismo e abuso. Ele se sente a autoridade máxima, aquela que tem todos os poderes. O de prender, julgar, sentenciar e castigar. Não se enxerga na condição do que, de fato, deveria ser: protetor de direitos humanos.” Para a pesquisadora, essa realidade só vai mudar quando houver um Estado forte, realmente comprometido em exigir civilidade dos policiais no trato com o cidadão e capaz de punir com rigor os excessos. Mas a própria Ronidalva reconhece o imbróglio: aos governos interessa essa mudança?