Lázaro Ramos: "Ser negro ainda é uma demarcação"

Diretor do espetáculo Namíbia, não!, o ator atualiza a discursão sobre a tensão racial brasileira
Bruno Albertim
Publicado em 13/11/2013 às 6:00
Diretor do espetáculo Namíbia, não!, o ator atualiza a discursão sobre a tensão racial brasileira Foto: Foto: Léo de Azevedo/Divulgação


Assim que leu o texto do amigo Aldri Anunciação, o ator e diretor Lázaro Ramos viu o impulso que faltava para mudar de lado no balcão e atuar, pela primeira vez, como diretor. Mais de duzentas apresentações depois no eixo Rio-São Paulo, ele consegue trazer, para uma minitemporada no Recife, o espetáculo Namíbia, Não! As sessões acontecem sexta e sábado, no Barreto Júnior. Vencedor de um prêmio Jabuti, o texto trata, de maneira esteticamente absurda, de uma medida provisória publicada no Brasil determinando que, mais de cem anos após o fim da escravidão, todos os negros devem ser enviados “de volta”, para algum país da África. Com humor surreal, a peça discute quem deve ou não voltar. “Era tudo o que eu queria, um texto que discutisse a relação do País contemporâneo com a desigualdade racial”, diz o Lázaro, o primeiro negro na história do Brasil a protagonizar uma novela como galã. A dimensão social atravessa sempre o pensamento do ator. “A questão é complexa. Claro, tem a minha ascensão social. Mas não posso esquecer que minha família e meus amigos, em Salvador, ainda são submetidos a um toque diário de recolher”, diz, nesta entrevista, por telefone, do Rio, onde vive – coincidentemente no mês da Consciência Negra.

JORNAL DO COMMERCIO – Como descobriu o texto?
LÁZARO RAMOS
– O autor e ator da peça é meu amigo, me apresentou o texto. Ele não sabia o potencial do texto, quando eu li, eu fiquei louco e me ofereci para dirigir. Era tudo o que eu queria, a relação do Brasil contemporâneo com a questão racial, a questão da negritude. Eu já tinha dirigido um espetáculo infantil na Bahia e atuado como assistente de outras peças. Inevitavelmente, trago a influência de todos diretores com os quais trabalhei. João Meireles, João Falcão... sempre escutava a voz deles falando comigo. Apesar da inexperiência como diretor, eu tinha dois atores extremamente talentosos para me ajudar a construir o espetáculo.


JC – O texto foi na íntegra para o palco?
LÁZARO –
Eu tive coragem de cortar 26 páginas, trechos que compreendi que eram para ser lidos, não encenados. Eu montei primeiro tudo que estava escrito. Depois, tirei tudo aquilo que era informativo e deixei só o que era sensorial. Criamos alguma cenas, como a cena sobre quem vai ou não embora do Brasil, quem merece ficar, se Camila Pitanga vai ou fica, o que vai acontecer com Nossa Senhora Aparecida. É muito engraçado, o texto ganhou o prêmio Jabuti de literatura juvenil, a gente nunca esperou. Talvez porque seja uma comédia. Tem uma escrita muito ágil. Mas, por outro lado, a gente ainda está na essência dessa questão.

JC – A peça parece ter aguçado seu senso sociológico sobre a antiga questão racial brasileira. Ainda existe um papel demarcado para o negro na sociedade mais ampla brasileira?
LÁZARO –
Esse papel é o papel da diversidade mesmo. A gente quando debate fica querendo achar uma resposta muito definitiva. Carregamos marcas históricas e que encerramos numa questão de maneira maniqueísta, Agora, temos que lidar com a complexidade, estar atentos o tempo todo.


JC – Ser negro ainda é um estigma?
LÁZARO –
Sim, acho que é. Mas acho importante que seja. Da mesma maneira, acho importante fazer uma novela em que questão da raça não é discutida. Fazer o personagem que tinha mais coisas a serem discutidas em relação à sexualidade. A questão é complexa mesmo. E digo isso com a bagagem de ter feito mais de 140 entrevistas no Canal Brasil. A cada entrevista, eu vejo como essa questão se atualiza.

JC – Joaquim Nabuco já falava que ascensão social “embranqueceria” os negros aos olhos da sociedade. Tua ascensão profissional, social e material te “embranqueceram”?

LÁZARO – Não concebo assim. Minha origem me lembra todo dia de onde eu vim. Claro, eu sou bem tratado. Mas, mais uma vez, a questão é complexa. Sou bastante reconhecido pelo meu trabalho, mas, por outro lado, a coisa da cor da pele é sempre lembrada na hora das ofensas. Às vezes, dá vontade até de chorar, com as ofensas da internet, que é a morada dos covardes, porque não têm cara. Eu, a Taís (Araújo, atriz e esposa de Lázaro), a Camila (Pitanga)... ainda somos exceção. Não posso esquecer que eu venho de um bairro humilde de Salvador, o Federação. Tem a minha ascensão social, mas tem o fato de minha família ter que entrar em casa às 19h, todos os dias. É um toque de recolher não oficial. Por um lado, tem uma juventude afirmativa, que vai ascendendo. Por outro, ainda há muita vergonha. Outro dia, ouvi falar de dois garotos ligados ao candomblé, na Bahia, que tiveram que raspar a cabeça, mas preferiram se justificar dizendo que tinham leucemia do que admitir o vínculo religioso.

JC – As universidades produzem teses sobre a ampliação de uma classe média negra no Brasil. O fato de você, um ator negro, atuar como galã numa novela das nove não quer dizer que houve mudanças amplas?
LÁZARO –
A cada trabalho que eu faço, seja Madame Satã ou o Homem que copiava, sejam as novelas, sempre escuto isso. Quer dizer, ser negro ainda é uma demarcação.


JC – Ser um ator de grande popularidade certamente lhe ajuda na captação de patrocínios. Mas muita gente ainda reclama que cabe à iniciativa privada decidir o que vai ou não apoiar – a partir das opções do que já foi previamente aprovado para captação via Lei Rouanet. O empresariado brasileiro está preparado para atuar como mecenas?
LÁZARO –
Como disse, eu, a Taís e a Camila ainda somos exceções. Mas, nem pra mim é tão fácil conseguir produzir determinados conteúdos, as empresas simplesmente não querem patrocinar. E olha que sou um ator privilegiado. Imagina quantos criadores estão por aí sem conseguir viabilizar seus projetos. São poucos os diretores negros, não só no teatro, mas no cinema. Não estou dizendo que só os negros podem produzir com competência conteúdos ligados à questão racial. Mas precisamos ter acesso à diversidade. A produção ainda é muito concentrada também no Rio, em São Paulo. E não dá. Basta assistir O som ao redor e Tatuagem, dois filmes fortes, incríveis, que falam alto no imaginário.


JC – Há alguns anos, atores negros se reuniram no Cine PE: Festival do Audiovisual para lançar um manifesto exigindo que os atores negros não sejam submetidos aos estereótipos da mídia. O manifesto ainda faz sentido?
LÁZARO
– A situação mudou um pouquinho. Mas ainda estamos no meio do ciclo. Hoje, se fala muito da ascensão da classe C, que eu acho bastante questionável. Se observarmos a produção cultural, não vemos o protagonismo negro no lugar que deveria estar.

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