Claudia Raia é peça do imaginário brasileiro: seja como a inocente gostosa ou a vilã de novelas, ou ainda o inesquecível Tonhão, da TV Pirata que abriu as porteiras para o humor contemporâneo na grande mídia. Mas pouca gente sabe que ela é uma das pioneiras da cultura dos musicais que hoje toma os palcos brasileiros. A partir de amanhã, ela traz ao Recife Crazy for you. E conta, nessa entrevista, que ainda existem preconceitos por parte do empresariado brasileiro para patrocinar grandes espetáculos no Nordeste.
JORNAL DO COMMERCIO – Por que a dança é essencialmente dramatúrgica no musical Crazy for you?
CLAUDIA RAIA – A coreografia é muito bem construída, foi feita por uma das maiores coreógrafas e diretoras da Broadway, Susan Stroman, ganhadora de um Tony Award pela obra. Nada é gratuito. Cada passo tem uma intenção sentimental, como se algo estivesse sendo dito, mas as palavras estão sendo dançadas. A coreografia é o ouro desse espetáculo. Temos várias maneiras de comprar um conteúdo de um espetáculo americano. Às vezes, compramos só o texto, outras vezes, a montagem completa. Sempre, nos meus conteúdos americanos, eu compro o libreto e faço as coreografias com minha equipe. Não que eu não compre porque não queira pagar por isso, mas é que acho que o formato é sempre extremamente americano. Como produtora e intérprete, gosto de chegar mais perto do mais popular. No caso desse espetáculo, tudo parece muito universal.
JC – Já existe uma forma à brasileira de se montar musicais?
CLAUDIA – Sim, existe o musical brasileiro. Nossa escola é o teatro de revista. Comigo, o Lennie Dale (do grupo que propunha um musical brasileiro de grande ambiguidade sexual e expressão tropicalista, o Dzi Croquetes) foi minha grande escola. O que, contudo, não queira dizer que não possamos montar os conteúdos americanos. Se fosse assim, os russos não poderiam encenar Shakespeare. Os americanos e ingleses são os caras em musical. Estamos, no mínimo, 20 anos atrás deles. Acho que, agora, estamos pensando em conteúdos brasileiros. O musical sobre a Elis Regina é um puta espetáculo, a atriz é espetacular, nossa música é espetacular. Mas não temos ainda a estrutura profissional adequada, de contar com coreógrafos, letristas, compositores, todos trabalhando ao mesmo tempo. Fazer musical com conteúdo biográfico é louvável, mas falta ainda contar boas histórias brasileiras. Quando eu comecei, um programa de TV americano veio falar comigo e disse que eu era a nova brazilian bombshell. Levo isso até hoje, mesmo no Crazy for you, tem essa coisa de representar, a vedete é uma figura única, o tal jeito brasileiro de fazer. A gente rir de nós mesmos vem do teatro de revista, esse é nosso jeito, é nosso humor.
JC – E os já clássicos brasileiros, como os musicais de Chico Buarque, você não teria vontade de fazer?
CLAUDIA – Sim, eu tenho muita vontade de fazer o Gota d’água. Quero, claro, fazer a protagonista, o papel que foi da Bibi Ferreira. Acho que já estou amadurecida para isso. Quero fazer o papel.
JC – Ainda existem preconceitos entre os patrocinadores brasileiros sobre determinados conteúdos?
CLAUDIA –Claro. Cabaré, por exemplo, que montei, é um espetáculo soturno, fala do nazismo, tem alcoólatras, putas, tudo de pior junto. Houve o caso de um banco conhecidíssimo: eu fui pedir patrocínio, pessoalmente, como sempre faço, ao banco. O diretor me disse que, naquele momento, não podia juntar o nome do banco ao meu nome, já que eu fazia uma vilã muito conhecida na novela Salve Jorge. Disse que estavam todos com medo de levar uma bofetada minha. Mas quem entra em teatro geralmente volta a patrocinar. Por isso, tenho que agradecer sempre a parceria da PortoSeguro, muito bacana, que nos patrocinou.
JC – O que mudou, técnica e artisticamente, desde que você começou a fazer musicais no Brasil?
CLAUDIA – Lá atrás, eu fazia musical dançando com um microfone com fio no palco (risos). Hoje, temos elenco, equipe técnica, atores, cantores; temos até a figura do satélite manager, que é o cara que fica na frente de um colin, que é um conjunto de várias televisões. Ele é que chama o show inteiro, é responsável por tudo. Os americanos é que nos ensinaram isso. As pessoas dizem que eu sou uma escola ambulante. E sou mesmo. Nesses 30 anos, montei muita coisa, formei muita gente, fui ensinando.
JC – E por que, afinal, montar Crazy for you?
CLAUDIA –Foi o musical que trouxe de volta o reinado musical da Inglaterra para os Estados Unidos. Tenho visto tudo, todos os anos, eu viajo para ver os musicais lá fora. Chicago é um espetáculo que eu amo, mas acho que não vai dar certo no Brasil, é uma história muito americana, uma realidade que ninguém conhece. Temos tudo isso. Essas coisas, às vezes, são musicais. O Crazy for you é uma história americana sim, a gente transformou aqueles caipiras numa Família Buscapé. Aqui, a mocinha é quase um homem. É interessante você ver a mocinha subvertida. Nós rimos muito de nós mesmos, somos musicais e rítmicos. O sapateado é algo que deixa as pessoas tontas na plateia. As pessoas ficam como eu fiquei. É uma comédia de amor, rasgada, que tem 19 sucessos dos Gershwim. Tem a coreografia de uma mulher que ganhou todos os prêmios. Tem uma história de amor naif, então é um espetáculo extremamente alegre, de um entretenimento perfeito. Embora seja uma história sessão da tarde, é muito envolvente.
JC – E por que traduzir as letras para o português, se elas são já tão universais?
CLAUDIA – É uma tarefa muito difícil traduzir Gershwuim, mas as letras contam a história. Então, o (Miguel) Falabella fez a tradução com uma beleza, como se fosse original. O público diz que as letras parecem ter sido feitas em português. Não é a música sozinha, ela é inserida dentro do contexto.
JC – Tenho conversado com produtores nacionais que dizem que, a despeito do crescimento econômico acima da média da região, o Nordeste ainda é preterido por patrocinadores. Mesmo com o incentivo da Lei Rouanet, vários não se interessem em associar o nome a grandes espetáculos que venham para a região...
CLAUDIA – O público do Nordeste é tão musical, ama os musicais e todos os musicais que eu consegui levar para aí eram produções pequenas. É difícil viajar com esse espetáculo, são dez carretas, 120 pessoas. Quiz fazer pelo menos o Recife e Salvador, que tem os teatros grandes, que nos comportam. Tantas vezes fiz grandes turnês e não consegui ir ao Nordeste por falta de patrocínio. Vamos a Brasília, a Paulínia (SP) e não conseguimos o Nordeste. Os patrocinadores não têm ideia da importância do teatro. As pessoas saem de casa atentas, prestam atenção em tudo, inclusive nas marcas. E é importante levar a todo o Brasil um gênero que caiu no gosto do País. Então, por favor, os empresários brasileiros, fiquem mais atentos ao teatro em geral e ao corpo a corpo que o teatro possibilita. Eu que vou pessoalmente a todos os patrocinadores, as pessoas são muito respeitosas. Já ouvi coisas maravilhosas e já vi gente falar até que não sabe o que é Lei Rouanet.
JC – Por que demorou tanto para encontrar um protagonista para contracenar com você no espetáculo?
CLAUDIA – Tem muitos bailarinos e cantores, mas muito pouca gente de sapateado, uma coisa bem americana. Eu já sapateava, porque nasci dentro de uma escola de dança. E o Jarbas (Homem de Melo, ator e namorado da atriz) é um cara que veio do Sul, fez danças típicas gaúchas, flamenco e foi para o sapateado americano. Quando fez comigo o De pernas pro ar, ele disse pra mim que sapateava. Aí me deu até um frio na barriga. Quando eu o vi sapateando, pensei: “Meu Deus, eu achei o Bob Child!”