Uma porta se abre e a câmera mostra o interior de um vestiário. Ao fundo, duas vozes, um tenor e um barítono, interpretam o célebre dueto da ópera Os Pescadores de Pérolas, de Bizet. O filme é preto e branco e, aos poucos, à medida que a câmera se aproxima dos chuveiros, é revelada a presença de dois dos principais cantores líricos brasileiros da atualidade, Fernando Portari e Leonardo Neiva.
São eles que cantam - enquanto se ensaboam. Foi com essa brincadeira, postada em redes sociais no começo de agosto, que o cineasta brasileiro Fernando Meirelles anunciou ao público o seu trabalho mais recente: a direção de uma nova montagem da ópera de Bizet, que estreia nesta quarta-feira (9/9), em Belém, no Pará, dentro da programação do Festival do Theatro da Paz, sua primeira incursão por este universo, o qual, ele não esconde, conhece muito pouco. "Mas desafinados também têm coração", diz.
Os Pescadores de Pérolas foi a primeira ópera de Bizet, "um honroso e brilhante fracasso", nas palavras do próprio compositor, mas a única entre suas obras, além de Carmen, a ter se mantido no repertório dos grandes teatros até hoje. A história se passa em uma praia do Ceilão, onde Zurga, líder dos pescadores de pérolas, e Nadir, um pescador, se apaixonam pela mesma mulher, a misteriosa sacerdotisa Leila. O amor vai afastar os dois amigos de infância - até a reviravolta final da ação.
Além de Portari, como Nadir, e Neiva, como Zurga, o elenco da produção paraense tem ainda a soprano Camila Titinger, como Leila, e o baixo Andrey Mira, como Nourabad. A regência é do maestro Miguel Campos Neto. E o espetáculo do dia 15 de setembro será apresentado ao vivo para 17 cinemas de todo o Brasil.
A presença de um cineasta à frente de uma montagem de ópera não é um fenômeno novo. Nos anos 1950, Lucchino Visconti produziu versões de referência de obras como La Traviata e Don Carlo. Desde então, diretores de origens e propostas estéticas diferentes, como Jurgen Flimm, Joseph Losey, John Schlesinger, Werner Herzog, William Friedkin, Benoît Jacquot, Anthony Minghella ou mesmo Woody Allen - para ficar em apenas alguns nomes - têm emprestado seus olhares para o gênero, muitas vezes criando versões difíceis de serem batidas.
No Brasil, em anos recentes, Ana Carolina e Ugo Giorgetti também se aventuraram pelo palco operístico, com uma Salomé no Teatro Municipal de São Paulo e Norma no Teatro São Pedro, respectivamente. Mas, para Meirelles, trabalhar com ópera foi algo inteiramente novo.
"Pelo que li, o libreto dos Pescadores foi considerado fraco desde o momento em que foi escrito", diz Meirelles em entrevista ao Estado. "Parece que o próprio autor se arrependeu de ter dado esse texto para o jovem Bizet, depois que ouviu a música do moleque, então com pouco mais de 20 anos, e sentiu que seu trabalho estava muito aquém do que o que ouviu. Hoje, a história seria classificada como um 'bromance', um romance entre 'brothers', a história de uma amizade comprometida pela paixão por uma mesma mulher. Pode ter sido aí que o Roberto Carlos se inspirou para escrever aquele famoso verso: 'Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu'. É a mesma história e acho que o assunto tem interesse."
DIÁLOGO
A concepção de Meirelles trabalha com base no diálogo entre duas linguagens distintas - a ópera e, claro, o cinema: "Pensei em uma montagem o mais popular possível, sem deixar de ser operística, mas destinada a gente ignorante em ópera, como eu. Para isso, trouxe a história para o Sri Lanka atual e enfiei algumas ceninhas filmadas para ajudar a colocar o público dentro da trama. Em algumas horas, em que os personagens lembram o passado ou estão em algum estado mental extremo, rodei estas ceninhas que ajudarão a deixar os espectadores mais envolvidos com eles. Sem querer, a montagem ficou com um ritmo de mudanças mais rápido do que o usual, creio que seja culpa da força do hábito. E ao passar do palco para a tela passa-se de um registro de interpretação mais expressionista e operístico para o registro mais realista do cinema. Espero que este contato não pareça uma trombada. O risco existe, claro, mas a vida é curta para se ter medo de errar", explica ainda o diretor.
Se o texto dos libretistas Eugène Cormon e Michel Carré não empolga, a música escrita por Bizet para Os Pescadores de Pérolas reúne diversas influências (de autores como Gounod ou Verdi), mas revela um caráter bastante pessoal do compositor, que cria um universo sonoro delicado, onírico - e este caráter pautou a caracterização visual imaginada pelo diretor.
"O que me fez topar esta aventura foi justamente a música, que é romântica, parece que flutua, tem a leveza e a fugacidade de um pensamento, de um sentimento. Foi seguindo este clima que chegamos aos cenários, que são leves e vazados, cheios de ar, com tons claros, nuvens, vento, estrelas. Foi esta a sensação que a música me deu", explica Meirelles.
E como o diretor tem visto sua primeira experiência à frente de uma produção operística? "Está sendo formidável e é formidável também poder ser um principiante aos 59 anos de idade. Mas, para ser honesto, preciso dizer que esta peça está sendo dirigida a 16 mãos. Os dois cantores, Fernando Portari e Leonardo Neiva, me dão dicas e me ajudam a resolver cenas o tempo todo. O Cassio Amarante, diretor de arte, pede para mudar a coreografia e a coreógrafa Marília Araújo sugeriu hoje mesmo, por exemplo, uma peça incrível que vai ser incorporada ao cenário. A Verônica Julian, figurinista, me recomendou mudar algumas projeções. Fico com a antena ligada e vou aproveitando todas as impressões. Nós temos uma equipe unida, motivada, apoiada pela direção do festival, o Mauro Wrona e o diretor do Theatro da Paz, Gilberto Chaves. Espero que não seja um fiasco. Acho que não será. Mas, se for, ao menos poderemos dizer que raras vezes demos tanta risada em tão pouco tempo na vida. Foram dias felizes", completa
CINEMA
A apresentação do dia 15 de setembro da ópera Os Pescadores de Pérolas será exibida em 17 cinemas de São Paulo, Rio, Brasília, Curitiba, João Pessoa, Porto Alegre, Santos e Florianópolis. "A direção desta transmissão não será minha, mas do Neivas Ortega, um diretor que já cobre a programação do Festival do Theatro da Paz há algum tempo. Eu entro só com o que acontece no teatro", afirma Fernando Meirelles.
Em São Paulo, a exibição ocorre no Cinépolis (JK Iguatemi), nas filiais do Espaço Itaú no Bourbon e no Frei Caneca e no Kinoplex Vila Olímpia.
No Rio de Janeiro, são cinco as salas: Cine Oden, Cinépolis Lagoon, Cinespaço Rio Design, Espaço Itaú e Kinoplex Leblon. Em Brasília, a ópera será exibida no Espaço Itaú; em João Pessoa, no Cinespaço; em Curitiba, no Cinépolis Batel e no Espaço Itaú; em Porto Alegre, no Espaço Itaú e no GNC Cinemas; em Florianópolis, no Cinespaço Beira Mar; e, em Santos no Cine Roxy
A produção também será tema de um documentário, que está sendo filmado por Ariel Schoartzman e Carlos Nader, diretor de Homem Comum, vencedor na categoria longa-metragem da edição do ano passado do festival É Tudo Verdade. "É um making-of centrado na história dos Pescadores e em algumas pessoas que estão participando da produção em funções diversas", acrescenta Meirelles.
*As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.